sexta-feira, 29 de abril de 2011
domingo, 24 de abril de 2011
PENITENTES DO CARIRI CEARENSE
Ameaçada de extinção, seita religiosa do Interior do Ceará luta para manter viva uma tradição de mais de um século
Barbalha. As chuvas de março transformam a região do Cariri cearense, no extremo sul do Estado e já nas divisas com Pernambuco e Piauí, num verdadeiro oásis de fertilidade. Caminho pela zona rural da cidade de Barbalha a procura de um negro de voz calma que atende pelo nome de Joaquim Mulato e carrega sobre seus ombros de quase 90 anos a responsabilidade de representar uma das mais antigas e intrigantes seitas religiosas do interior nordestino. Mulato é o Decurião da Ordem dos Penitentes do Sítio Cabeceiras, um grupo de agricultores único no Brasil que, infelizmente, parece estar com os dias contados. Chegar ali — um bucólico recanto cercado por canaviais escondidos no sopé da Floresta do Araripe — é razoavelmente fácil. Desvendar os mistérios que se escondem por trás da secular tradição religiosa, por sua vez, exige algo mais que a simples curiosidade. Sou recebido por Joaquim Mulato e seu Severino — os dois membros mais antigos da Ordem — na sala simples da pequena casa de barro e madeira. Toda a mobília está resumida a uma pequena mesinha onde reina absoluto o oratório repleto de santos católicos. Na parede, Expedito, São João e outros santos oficiais dividem o espaço com os ícones da religiosidade popular nordestina. Frei Damião e Padre Cícero merecem lugar de destaque. No canto esquerdo, erguido no alto e sustentado por um prego, descansa o símbolo maior da tradição messiânica, uma cruz de madeira, talhada artesanalmente há mais de um século e que resguarda a essência da manifestação religiosa. “Esse Cruzeiro é o sofrimento de Jesus, a luta dele pra salvar a humanidade”, diz Mulato. Na peça, chama a atenção a riqueza de detalhes. Partindo de uma lua azul, 16 espadas prateadas com um coração em cada ponta dão a idéia de um sol. No centro, o Sagrado Coração de Jesus se destaca em vermelho. Escrito à mão, em cada um dos braços da cruz lê-se “viva jezus para cempre”.
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A louvação à eternidade, no caso, bem que poderia estar diretamente ligada ao grupo. Liderada essencialmente por gente acima dos 70 anos, a Ordem pode estar vivendo os últimos capítulos de uma história iniciada na segunda metade do século XIX e que tem o mérito de ter atravessado o tempo sem perder as características originais. Com apenas 15 discípulos, Joaquim Mulato não vê muita perspectiva quanto ao futuro da tradição. “Os jovens não querem saber de penitência. Preferem as festas”, reclama o velho soldado, demonstrando o cansaço típico do final da batalha.
A louvação à eternidade, no caso, bem que poderia estar diretamente ligada ao grupo. Liderada essencialmente por gente acima dos 70 anos, a Ordem pode estar vivendo os últimos capítulos de uma história iniciada na segunda metade do século XIX e que tem o mérito de ter atravessado o tempo sem perder as características originais. Com apenas 15 discípulos, Joaquim Mulato não vê muita perspectiva quanto ao futuro da tradição. “Os jovens não querem saber de penitência. Preferem as festas”, reclama o velho soldado, demonstrando o cansaço típico do final da batalha.
Para Severino, o segundo na ordem hierárquica, até mesmo entre os que já abraçaram a missão é possível identificar os sinais da mudança. “Têm deles que a gente marca uma reunião para as seis horas e eles acham ruim, pois só querem vir depois da novela das sete”, critica.
Criada pelo Padre Ibiapina, um ex-advogado, ex-deputado federal e ex-delegado de Polícia, a Ordem possui alguns rituais que a diferencia das demais seitas populares do interior nordestino. O principal deles é o autoflagelo, ou simplesmente “disciplina”. Pode ser feito de diversas maneiras, desde longas caminhadas pedindo esmolas, até a martirização do corpo com instrumentos próprios para esse fim.
Joaquim me mostra um “cacho”, instrumento de suplício formado por lâminas de ferro e diz que o objeto pertenceu ao fundador da seita. A autoflagelação deve ser realizada junto aos cruzeiros, nas portas das igrejas ou nos cemitérios, sempre de madrugada e longe da visibilidade. Em função da idade, Joaquim não se açoita mais. Para os estudiosos do tema, é exatamente nisto que se nota com mais clareza as mudanças trazidas pelo tempo. Alguns grupos de penitentes do Nordeste já abriram mão dos rituais de autoflagelo há muito tempo, concentrando suas atividades nas caminhadas, nas esmolas e nas preces. Deixar o sacrifício em segundo plano ou substituí-lo por outras práticas, a propósito, preocupa quem luta para preservar a originalidade da tradição. “Penitente sem disciplina, não é penitente”, enfatiza Severino, que também foi obrigado a deixar o flagelo de lado por já ter passado dos 80 anos de idade. Com roupas escuras que destacam listras e cruzes brancas, os integrantes da Ordem usam capuzes semelhantes às burcas usadas no Oriente Médio, com uma abertura em formato de tela para enxergar. A única cor em toda indumentária é o vermelho do Sagrado Coração de Jesus, o mesmo ostentado no Cruzeiro que é carregado na frente do grupo durante as raras aparições em público. Para Severino, a religiosidade o acompanha desde cedo.
VOTOS DE CASTIDADE
Eu já tinha oito anos, meu pai era penitente e eu não sabia. Ninguém sabia, só minha mãe”, diz o agricultor numa referência ao clima de mistério que caracterizava originalmente as atividades do grupo. “Penitente não podia ser visto não. Só caminhava de noite, sem ninguém ver e só andava pelos sítios, nunca nas cidades”, lembra Joaquim. Nem Mulato — que até hoje mantém o voto de castidade — nem Severino, possuem filhos dentro da Ordem.
O anonimato, característica marcante durante as primeiras décadas da tradição, também parece escoar pelas veredas do tempo. Hoje, durante algumas “apresentações”, os penitentes se juntam a dezenas de outros grupos culturais, em plena luz do dia, fazendo a festa dos fotógrafos e cineastas que visitam a região para documentar as tradições que fazem desse pedaço do interior nordestino um relicário das mais autênticas manifestações do povo sertanejo. Na Festa de Santo Antônio, por exemplo, a maior da cidade, reisados e bandas cabaçais dividem espaço com lapinhas, pastoris, karetas e vaqueiros vestidos a caráter. Um espetáculo multicolorido que atrai a atenção de pesquisadores e que há alguns anos despertou, ainda que tardio, o reconhecimento dos órgãos governamentais. A escolha dos chamados “Mestres da Cultura Popular” é feita anualmente e busca valorizar os que lutam pela tradição nas diversas áreas, como a xilogravura, o artesanato, o folclore e a religiosidade. Joaquim é um desses Mestres.
Seguindo as orientações dos mais antigos, os Penitentes de Barbalha seguem a caminhada espiritual cruzando as estradas empoeiradas da Chapada do Araripe, cantando benditos (já gravaram até um CD) e levando sua doutrina para os moradores da verde região sul do Ceará. Em alguns momentos os homens recebem a companhia das mulheres, que cantam suas “incelências” e embelezam ainda mais o singelo ritual de fé.
Eles já receberam a visita do bispo diocesano do Crato, dom Fernando Panico, que pela primeira vez foi conhecer de perto a manifestação. A visita foi uma promessa feita pelo líder religioso e simbolizou a tendência de uma aproximação entre a Igreja formal e as manifestações da religiosidade popular numa terra onde o Padre Cícero é, para o povo, tão importante quanto qualquer santo oficialmente canonizado.
AUGUSTO PESSOA.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
Que anjos são estes que guerreiam contra a fome, a peste e o pecado? Que purgam, na própria carne, a transgressão do mundo? Corpos lanhados, como o de Cristo, que dialogam com os crucifixos. Ordem dos penitentes, grupo que perambula emcapuçado, pelas noites, rezando e bodejando benditos. Uma fé incondicional. Uma tradição que vem de tempos remotos, passa pela idade média e chega ao sítio Cabaceiras, Barbalha. Introduzida pelos missionários do século XVIII, reforçada quando da epidemia de cólera no século XIX, pela mediação do Padre Ibiapina.
Luiz Domingos de Luna
quinta-feira, 21 de abril de 2011
PENITENTES DE JUAZEIRO DA BAHIA
Uma das mais fortes manifestações do período da Quaresma resiste ao longo de mais de dois séculos no Sertão do São Francisco. Durante os 40 dias que antecedem a comemoração da ressurreição de Jesus Cristo, Domingo de Páscoa, um grupo de católicos do município procura formas surpreendentes para manter a tradição, do jejum à autoflagelação. A cada ano, o ritual se renova em torno de dois grupos conhecidos por Cordões das Alimentadeiras das Almas e os Disciplinadores, que fazem procissões distintas e se encontram no cemitério para rezar pelas “almas perdidas”.
Os rituais acontecem às segundas, quartas e sexta-feiras, a partir da meia-noite, quando homens e mulheres vestidos em lençóis brancos, formam longas filas indianas e seguem pelas ruas que dão acesso ao cemitério. Em vez de um andor com uma imagem sacra, os penitentes carregam uma cruz gigante na frente, marcando a rota da caminhada. Todos obedecem ao badalo exótico de uma matraca (instrumento de madeira que emite um som estridente).
De acordo com a professora e folclorista Maria Izabel Figueredo, estudiosa sobre o assunto, há indícios de que a peregrinação dos penitentes tenha se iniciado em 1710, quando os frades franciscanos que viviam no Vale do São Francisco evangelizavam as comunidades da região. “A partir disso, as futuras gerações foram resgatando os costumes marcados pela fé e religiosidade”, comenta a professora. Ela aponta que, no passado, o jejum era tido como único meio para se redimir dos pecados e conveter-se a Deus. Mas a penitência se tornou o mais doloroso modo de pagar os pecados.
A folclorista informa que os disciplinadores praticam a autoflagelação com a missão de derramar o próprio sangue em honra à Paixão de Cristo. A partir da meia-noite, apenas os homens – que preferem manter a identidade preservada e não aceitam conceder entrevistas – entram no cemitério e praticam a autoflagelação. Eles evitam a presença de estranhos. Sem camisa, usam lâminas afiadas presas à ponta de uma corda de couro e açoitam as próprias costas, sem se importar com as dores ou sangue derramado.
Para Izabel Figuerdedo, que além de estudar a tradição acompanha há vários anos a saga dos penitentes, os atos cometidos por eles podem ser comparados aos da Idade Média, “Período em que o homem vivia sob o temor da luta entre o bem e o mal, da salvação ou danação eterna”, lembra.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
CENTRO DE MÚSICA EM CONCEIÇÃO DAS CREOULAS
" Como é bom poder tocar um instrumento",parafraseando o poeta de Santo Amaro da Purificação, a comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas,distrito de Salgueiro,Sertão Central de Pernambuco,ganhou um Centro de Música.O núcleo conta com 68 inscritos (reunindo pessoas de todas as idades), que irão aprender teoria e prática musical de pífanos e percussão. Sob a coordenação do maestro Cacá Malaquias, as aulas serão ministradas por instrutores e pelos mestres do pífano e da cultura popular de Conceição das Crioulas, que transmitirão conhecimentos técnicos específicos aos alunos. Segundo a secretária Eliane Alves, por conta do perfil multicultural da comunidade que já dispõe de outros projetos com linguagens diferentes no mundo das artes, o núcleo de música chegou para agregar novos valores e formação profissional.Dessa forma estamos estimulando mais os jovens a aprender a tocar o pífano e percussão, valorizando a cultura musical que é um dos patrimônios da comunidade”, observa a secretária. Para a aposentada e aluna do Centro de Música, Generosa Ana da Conceição, 63 anos, a iniciativa é uma oportunidade de valorizar a cultura da banda de pífanos de Conceição. “É com alegria que recebemos este espaço, uma grande conquista que fará com que a nossa cultura não seja esquecida ao longo do tempo”, disse Generosa.
terça-feira, 12 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
SILA,A CANGACEIRA QUE ESCAPOU FEDENDO
A costureira aposentada Ilda Ribeiro de Souza, a "Sila", 77 anos, foi cangaceira durante dois e é a última sobrevivente do massacre que matou Lampião e Maria Bonita, em Angicos, Estado de Sergipe, em 1938. Viúva de Zé Sereno, homem de confiança de Lampião, ela lembra como era a vida no cangaço e ainda tem pesadelos com tiroteios.Sou boa corredora, e por isso escapei do cerco que matou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros que tiveram suas cabeças decepadas e exibidas pelo Nordeste. Participei do cangaço por dois anos, depois que Zé Sereno me sequestrou para ser sua mulher. Nasci em Poço Redondo, interior de Sergipe, às margens do rio São Francisco. Na minha casa, éramos oito irmãos – seis homens e duas mulheres –, sou a sexta filha. Meu pai tinha uma pequena fazenda. Quando eu tinha 6 anos, minha mãe morreu, nem sei de quê. O povo diz que foi de nervoso. Era uma vida sacrificada. Mas tínhamos uma família unida, meu pai nos ensinou a ter respeito pelos mais velhos, a ser honestos e a ter personalidadeDesde menina eu escutava histórias sobre Lampião, mas achava difícil ele chegar ali. Só que um dia ele passou pela cidade. Eu estava na casa de minha madrinha, e os coiteiros [sujeitos que protegiam os bandidos] foram avisar meu tio que os cangaceiros estavam chegando. Ele tinha uma venda e poderia ser assaltado. Meu tio trancou eu e minhas primas num quarto. E eu louca para ver Lampião! Deitei no chão para espiar por debaixo da porta. Eles levaram açúcar, bolachas e foram embora. Só vi os pés dos cangaceiros.
Eu tinha uns 12 anos quando papai morreu, e meu irmão mais velho, João, é quem tomou conta da gente. Eu estudava na cidade, só ia para a fazenda nas férias. Corria o boato de que os cangaceiros sequestravam as moças e, como eu era bonitinha, cheia de luxos, meu irmão tinha medo de que eu fosse à fazenda: 'Os cangaceiros podem lhe carregar'. Foi ele falar, no dia seguinte cinco deles invadiram nossa fazenda.
Mandaram a gente preparar uma galinha e era para eu levar até o riacho, onde eles estavam acampados. Eu disse que não iria, mas meu irmão achou que seria pior. Fui caindo pelo caminho, de medo. Tremia tanto quando entreguei a comida para o cangaceiro Zé Baiano que ele disse: 'Menina, nós não vamos fazer nada com você'. E me deu um anel, que não aceitei. Fui para casa e comecei a arrumar a mala para fugir quando Zé Sereno, o chefe do bando, apareceu e ameaçou: 'Volto daqui a oito dias para te carregar. Não adianta fugir. E não conte para ninguém'.Guardei segredo os oito dias todinhos, morrendo de angústia. Tinha medo de que fizessem mal à minha família. No dia marcado chegou o bando. Fizeram uma festa na fazenda. E eu triste, pedindo a Deus que Zé Sereno não quisesse mais me levar. Dancei com Luís Pedro, que estava com Neném, sua mulher. Ao amanhecer, Neném me disse: 'Sila, se prepare que a gente vai embora'. Imaginei que, se não fosse, matariam minha família.Fui com a roupa do corpo. Meus irmãos nem me viram sair e, mesmo que tivessem visto, quem era louco de reclamar? Fomos andando pelo mato, calados. Zé Sereno na frente, eu atrás.Era tudo tão estranho, parecia que eu flutuava. Eu chorava quietinha, e Neném me dizia que não adiantava chorar. Se a gente pisava numa pedra e tirava do lugar, os homens colocavam de novo, para não deixar pistas para os macacos [policiais].Zé Sereno não tinha aparência ruim: era baixo, de tipo nortista e tinha uns 20 anos. Ganhou o apelido de Sereno por causa do temperamento. Mas eu estava morrendo de medo dele.À noite, ele estendeu um cobertor em cima de uma pedra, e tive de me deitar com ele. Foi assim minha primeira noite. Fui sabendo que a partir daquele dia seria sua mulher. Naquela época o marido era um só, não tinha esse negócio de separação. Ele nunca me maltratou, mas tinha o jeito dele, a grossura dele. No dia seguinte, paramos em uma fazenda e a volante [grupo de policiais] apareceu. Nesse tiroteio morreu Neném. Apesar de termos passado só um dia juntas, ela foi minha primeira amiga ali. Eu só chorava, desesperada.Dali fomos encontrar Lampião, que estava acampado em Sergipe. No caminho, outro tiroteio. Comecei a pegar prática de fugir correndo. Chegando no acampamento, Lampião me olhou e deu uma bronca no Zé: 'Como, uma menina?'. Zé respondeu que eu era a mulher ideal para ele. Eu imaginava Lampião baixo, e ele era alto, magro. Simpático, mas de pouca conversaMaria Bonita me chamou para ir à barraca dela e trocar de roupa, porque eu ainda estava do jeito que saí da fazenda. Me deu um vestido dela de brim, enfeitado com passamanarias. Ficou enorme. Ela era mais gorda e mais baixa do que eu. Maria era divertida, inquieta, chamava a atenção, mas não era tão bonita. Tinha muita mulher bonita no mato. As que conheci melhor foram ela e Dulce, mulher do cangaceiro Criança.No dicionário, cangaceiro é bandido. Mas o Lampião da história oficial não é o mesmo que conheci. Bandido, essa palavra a gente não pode tirar. Mas ele só era bandido para quem era para ele também. Ele se preocupava com a moral do bando, tinha amizades, considerava as pessoas, as crianças. E era muito religioso, rezava de manhã e à tarde.Nunca presenciei um ato de selvageria. Às vezes ficava sabendo de execuções necessárias à segurança do bando, mas nunca vi tomarem nada dos pobres, ao contrário. Quando chegava nas casas, se a moça ia casar, a gente dava o enxoval todo. Se via criança passando fome, o que a gente tinha dava. Nossa riqueza era a polícia nos deixar em paz.De noite, se não tinha perseguição, a gente tirava os bornais [bolsas de pano que usavam a tiracolo], estendia uma coberta. Senão, era só encostar em uma árvore. Dormia debaixo de chuva, de xiquexique [cacto]. Nunca mais deitei numa cama nem sentei em uma mesa para comer.A comida principal era bode assado. De vez em quando matavam um boi roubado. Quando não tinha nada, comíamos jacuba, uma mistura de rapadura com farinha e água. Eu tinha vontade de comer arroz, mas era difícil.Às vezes eu ficava no coito [esconderijo] com Maria Bonita. Lampião ia encontrar amigos e deixava uns cangaceiros com a gente. Ali, um respeitava a mulher do outro, não tinha bagunça. Falam que os cangaceiros eram machistas, mas isso dependia da inteligência da mulher. No nosso bando eles respeitavam muito a nossa opinião, mesmo que a gente não tivesse muita função nas lutas. Nos curtos períodos de trégua, as que sabiam costurar costuravam. Tínhamos máquinas de manivela. Apesar da vida dura do sertão, os cangaceiros eram vaidosos, gostavam de usar jóias e roupas enfeitadas.Uns dois meses depois da partida, engravidei e fiz o enxoval do meu filho todinho no mato. Fiz camisinhas em opalina, tecido fininho, tudo cor-de-rosa, bordadinho à mão. E nasceu homem. Mas, com dois dias, tive que dar ele. Era proibido ter crianças no bando: dificultaria as caminhadas e o choro seria uma pista. Ao nascer, a criança era levada por um coiteiro para alguém criar.Tive meu filho embaixo de uma árvore, Maria Bonita foi a parteira. No outro dia Lampião jogou uma aguinha na cabecinha dele, rezou um padre-nosso e o batizou como João do Mato. Aí o coiteiro chegou, e chorei muito. Dobrei as roupinhas dele e mandei entregar para uma pessoa de minha confiança. Meu leite demorou a secar e fiquei muito deprimida. Soube depois que com seis meses João adoeceu e morreu.Eu não tinha muita noção do que era o cangaço. Apesar de ser considerado um movimento revolucionário, naquela época ninguém pensava assim, nem Lampião. Era o jeito de sobrevivermos sem obedecer aos coronéis. Eu achava que aquilo não era vida de gente. Mas não tinha saída.Nos tiroteios, eu rezava muito, era tudo caindo, e eu rezando. Uma vez, tinha tanto macaco em volta que a gente não podia mais andar. Um tiro passou perto da minha cabeça e levantou um tampo de terra do chão. Vi muita gente morrer na minha frente, mas, engraçado, nunca pensei na morte.Apesar do sofrimento, entrei no espírito do grupo. Andava com um punhal e uma pistola 'máuser' pequenininha, que dava cinco tiros, igual à de Maria Bonita. Mas só usei uma vez, para libertar o Zé. Ele entrou em uma casa e um homem o derrubou no chão. Por causa do peso do armamento, quando um cangaceiro caía, era difícil levantar. Eu cheguei na hora, peguei minha pistola e falei: 'Se não soltar ele agora, eu mato'. Depois Zé falava para todo mundo que, se não fosse eu, ele tinha morrido.O momento bom era fim de mês, quando os macacos iam receber o ordenado na sede da polícia, na Bahia. Por 15 dias o sertão ficava livre. A gente ia para a fazenda de algum coiteiro, matava criação, fazia festa. O cangaceiro Balão tocava realejo [espécie de acordeom], a gente dançava. Éramos como uma família.Quando Zé Sereno informou que iríamos para a gruta de Angicos, em Sergipe, onde o massacre aconteceria, achamos que seria mais uma reunião de costume. A viagem foi tranquila, mas, ao chegar, notei Lampião abatido. Talvez estivesse adivinhando as coisas. Maria me disse que há uns meses ele andava assim.De noite, depois de comer, Maria disse a Lampião que ia sair comigo para fumar. Ela não fumava na frente dele em sinal de respeito. Ela gostava de conversar comigo. E me confidenciou que estava cansada daquela vida: 'Nem minha filha posso ver, é só fugir, correr'. Contou que tinha até proposto a Lampião irem morar no Mato Grosso, e ele não quis. Durante a conversa, percebi uma luz, ao longe, que acendia e apagava, como uma lanterna. Comentei com Maria e ela disse que devia ser um vaga-lume. Já eram os macacos posicionados para nos atacar.Voltamos para a barraca, Zé já estava deitado, preferi não incomodá-lo. Se eu tivesse acordado ele, ele chamaria Lampião, teríamos fugido ou nos equipado. Mas a volante chegou de surpresa. Acho que estava escrito.No dia 28 de Julho de 1938, Zé Sereno se levantou antes de amanhecer e foi rezar com Lampião. Falei que ia dormir mais um pouco e já me levantei com um tiro. Saí descalça, correndo, a fumaça das balas não me deixava enxergar nada. Era tiro de metralhadora, rifle, revólver. Segurei nas mãos de Enedina e corremos. Vi o desespero dos outros, pela última vez avistei meu irmão, Mergulhão, que tinha entrado no cangaço até por minha causa.Subimos um morro com sangue escorrendo pelas pernas machucadas pelos espinhos dos xiquexiques. Enedina foi atingida e os miolos dela cobriram meu rosto. Eu e Criança nos arrastamos por uns 300 metros e escapamos. Ouvíamos os gritos dos soldados: 'Lampião está morto!'. De repente, Zé apareceu entre as moitas. Depois soubemos que ao todo foram 11 mortosFoi a coisa mais triste do mundo. Arrasados, fugimos com os outros sobreviventes e passamos uma temporada no mato. De vez em quando aparecia um coiteiro que nos contava que as cidades estavam em festa. Soubemos que as cabeças de nossos amigos foram exibidas em várias cidades. Eu nunca quis saber detalhes sobre isso, nunca quis ver as fotografias. As lembranças desse dia são horríveis. Com o tempo, a memória vai ficando mais sensível. Tenho pesadelos frequentes com tiroteios, em que corro, corro... Só acordo quando caio da cama.O bando foi reorganizado às pressas por Zé Sereno, mas, sem Lampião, o movimento estava morto. Nos escondemos em uma fazenda amiga, e o capitão Aníbal, comandante da polícia, a mando do presidente Getúlio Vargas, começou a mandar cartas para o Zé, falando que a gente se entregasse, que nada iria acontecer. Um dia Zé reuniu todos os cangaceiros e falou: 'Se não der certo, a gente se revolta'.Seguimos para Jeremoabo, cidade baiana, onde devíamos nos entregar, e, no caminho, passamos um dia em Serra Negra. Quando entramos na cidade, não ficou ninguém dentro de casa. Saíram todos para nos ver. Lá, à tarde, eu e Zé casamos na igreja. Usei um vestido estampado. Estava feliz, achando que a vida ia melhorar.Ao nos entregarmos, não fomos presos, mas não podíamos sair da cidade. Os casados tinham até direito a uma casa. Eu estava grávida e tive um aborto aos cinco meses. Adoeci, sentia dores pelo corpo, acho que de canseira.Após dois meses, fomos tentar a vida em Salvador. Antes, pedi que Zé desse ao capitão Aníbal os pertences do cangaço – chapéus, bornais, cantis cravejados a ouro. Queria esquecer tudo. Zé tomou conta de uma fazenda de cana até sair a anistia. Lá, tive Gilaene, minha primeira filha. Mas Zé pegou uma briga com jagunços e fugimos. Andamos a pé semanas. Meu braço ficou inchado de carregar a menina.Fomos para Minas, onde tive Ivo, meu segundo filho. Zé trabalhava em uma fazenda e eu costurava. Tive outro parto, de gêmeos, que morreram com 14 dias. Depois de outras pequenas andanças, paramos em São Paulo, onde tive Wilson, o caçula, e aprendi a evitar filhos, com tabelinha.Fomos morar no bairro de Vila Jaguara, onde criamos as crianças. Zé trabalhou como segurança particular, depois em uma escola da prefeitura, onde se aposentou. Mas eu é quem sempre tomei as rédeas da casa. Costurei por dia em casa de freguesa, tive sala de costura nos Jardins, costurei no Mappin, na TV Bandeirantes, fiz bicos de vendedora e enfermeira.
Por nove anos Zé viveu doente, a vida ficou ainda mais dura. Ele morreu de derrame cerebral em 1982. Durante quase 50 anos juntos, ele foi bom pai, mas toda a vida foi mulherengo.Por muitos anos, nunca comentei nossa história com ninguém. Só me dei conta da importância do que tinha vivido quando meus filhos já eram moços. Hoje vivo de aposentadoria e ganho algum dinheiro extra dando palestras em faculdades e eventos sobre o cangaço. Daquela época, guardo apenas o chapéu do Zé e um bornal.
Eu sou feliz, graças a Deus. Pude criar meus filhos com três coisas importantes – paz, saúde e uma mãe que olhasse por eles. Acho que o cangaço era meu destino e que sobrevivi para contar a história. Me dou valor por ser o que sou e ter passado o que passei. Mulher tem que ser corajosa. Até hoje ando sozinha por esse Nordeste todo, todo mundo sabe que fui cangaceira de Lampião e me respeita."
Depoimento a Rosane Queiroz
sexta-feira, 8 de abril de 2011
O GENIAL GUITARRISTA MANEL D' JARDIM
Manel D’Jardim, de acordo com o ponto de vista, pode ser definido como um músico endiabrado ou um músico divino; ou, talvez, a melhor definição possa ser as duas conjugadamente: um músico divinamente endiabrado. Afinal, bem e mal são faces de uma mesma moeda.
O escritor José Flávio vieira, foi por demais feliz e preciso ao falar sobre o talento e a personalidade sempre controversa de Manel D’Jardim:
“Se existem almas penadas, um poeta nosso definiu, com a genialidade única dos poetas, Manel D’Jardim é uma alma empenada. Com a mesma maestria com que empena aquela tradicional maneira de pensar e sentirnatureza, nosso artista empena o som, empena os costumes e as etiquetas, empena aquela embolorada maneira de arpejar o violão. Extremamente lúcido na sua loucura, Manel mostra a todos que a beleza e a verdade se escondem na dissonância da vida e que para transformar o planeta é preciso abrir novas sonoridades, criar novas veredas, transvê e desformar a harmonia imutável deste mundo. Seu violão derrama as pétalas das flores do jardim que floresce no seu sobrenome e na sua alma. Úmido de irreverência, prenhe de rebeldia, seu som mais desperta e fustiga que tranquiliza. É como se ensinasse a todos que a reta certamente não é o menor caminho entre dois pontos e que é preciso provar da fruta doce do bem e do mal. (...) Empenem e empinem as asas da imaginação e curtam a música sacrossantamente profana desta alma empenada”.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
Curtir o Pedro Bial
E sentir tanta alegria
É sinal de que você
O mau-gosto aprecia
Dá valor ao que é banal
É preguiçoso mental
E adora baixaria.
Há muito tempo não vejo
Um programa tão ‘fuleiro’
Produzido pela Globo
Visando Ibope e dinheiro
Que além de alienar
Vai por certo atrofiar
A mente do brasileiro.
Me refiro ao brasileiro
Que está em formação
E precisa evoluir
Através da Educação
Mas se torna um refém
Iletrado, ‘zé-ninguém’
Um escravo da ilusão.
Em frente à televisão
Lá está toda a família
Longe da realidade
Onde a bobagem fervilha
Não sabendo essa gente
Desprovida e inocente
Desta enorme ‘armadilha’.
Cuidado, Pedro Bial
Chega de esculhambação
Respeite o trabalhador
Dessa sofrida Nação
Deixe de chamar de heróis
Essas girls e esses boys
Que têm cara de bundão.
O seu pai e a sua mãe,
Querido Pedro Bial,
São verdadeiros heróis
E merecem nosso aval
Pois tiveram que lutar
Pra manter e te educar
Com esforço especial.
Muitos já se sentem mal
Com seu discurso vazio.
Pessoas inteligentes
Se enchem de calafrio
Porque quando você fal
A sua palavra é bala
A ferir o nosso brio.
Um país como Brasil
Carente de educação
Precisa de gente grande
Para dar boa lição
Mas você na rede Globo
Faz esse papel de bobo
Enganando a Nação.
Respeite, Pedro Bienal
Nosso povo brasileiro
Que acorda de madrugada
E trabalha o dia inteiro
Dar muito duro, anda rouco
Paga impostos, ganha pouco:
Povo HERÓI, povo guerreiro.
Enquanto a sociedade
Neste momento atual
Se preocupa com a crise
Econômica e social
Você precisa entender
Que queremos aprender
Algo sério – não banal.
Esse programa da Globo
Vem nos mostrar sem engano
Que tudo que ali ocorre
Parece um zoológico humano
Onde impera a esperteza
A malandragem, a baixeza:
Um cenário sub-humano.
A moral e a inteligência
Não são mais valorizadas.
Os “heróis” protagonizam
Um mundo de palhaçadas
Sem critério e sem ética
Em que vaidade e estética
São muito mais que louvadas.
Não se vê força poética
Nem projeto educativo.
Um mar de vulgaridade
Já tornou-se imperativo.
O que se vê realmente
É um programa deprimente
Sem nenhum objetivo.
Talvez haja objetivo
“professor”, Pedro Bial
O que vocês tão querendo
É injetar o banal
Deseducando o Brasil
Nesse Big Brother vil
De lavagem cerebral.
Isso é um desserviço
Mal exemplo à juventude
Que precisa de esperança
Educação e atitude
Porém a mediocridade
Unida à banalidade
Faz com que ninguém estude.
É grande o constrangimento
De pessoas confinadas
Num espaço luxuoso
Curtindo todas baladas:
Corpos “belos” na piscina
A gastar adrenalina:Nesse mar de palhaçadas.
Se a intenção da Globo
É de nos “emburrecer”
Deixando o povo demente
Refém do seu poder:
Pois saiba que a exceção
(Amantes da educação)
Vai contestar a valer.
A você, Pedro Bial
Um mercador da ilusão
Junto a poderosa Globo
Que conduz nossa Nação
Eu lhe peço esse favor:
Reflita no seu labor
E escute seu coração.
E vocês caros irmãos
Que estão nessa cegueira
Não façam mais ligações
Apoiando essa besteira.
Não deem sua grana à Globo
Isso é papel de bobo:
Fujam dessa baboseira.
E quando chegar ao fim
Desse Big Brother vil
Que em nada contribui
Para o povo varonil
Ninguém vai sentir saudade:
Quem lucra é a sociedade
Do nosso querido Brasi
E saiba, caro leitor
Que nós somos os culpados
Porque sai do nosso bolso
Esses milhões desejados
Que são ligações diárias
Bastante desnecessárias
Pra esses desocupados.
A loja do BBB
Vendendo só porcaria
Enganando muita gente
Que logo se contagia
Com tanta futilidade
Um mar de vulgaridade
Que nunca terá valia.
Chega de vulgaridade
E apelo sexual.
Não somos só futebol,
baixaria e carnaval.
Queremos Educação
E também evolução
No mundo espiritual.
Cadê a cidadania
Dos nossos educadores
Dos alunos, dos políticos
Poetas, trabalhadores?
Seremos sempre enganados
e vamos ficar calados
diante de enganadores?
Barreto termina assim
Alertando ao Bial:
Reveja logo esse equívoco
Reaja à força do mal…
Eleve o seu coração
Tomando uma decisão
Ou então: siga, animal…
Autor: Antonio Barreto,
Cordelista natural de Santa Bárbara-BA,
residente em Salvador.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
PAÊBIRÚ,LULA CÔRTES E ZÉ RAMALHO DA PARAÍBA
Fala Zé Ramalho da Paraíba:
Escrevo sobre este trabalho depois de dois anos que ele foi realizado. Na realidade é a primeira vez que me proponho à fazê-lo, devido ao ciclo de fatos e sentimentos que tornariam e entornaram o caldo. Ele seria forte demais para a humilde estrutura que o aguardava. Escrevo sem Lula Côrtes, sem parábolas e sem mistérios. É a soma de tudo, e do que restou na estrada que percorremos. Claro que isto tudo é muito verídico para se publicar para essa massa de gente que não sabe e nem se importa com a mutação de toda uma era. Nossa era. No início, havia um "mantra", uma hipnose magnética e mágica. Uma espécie de retorno ao elo do OMM que por instantes conseguimos segurar sem contudo conseguir mantê-lo nas mãos. Paêbirú sempre foi uma ópera em todos os sentidos que se possam apresentar como argumento teórico ou não. Apenas nós não tivemos nossos nomes em anúncios luminosos nas fachadas do sistema. O rótulo era pobre demais para uma gravadora mais pobre ainda. Todos os sobreviventes da Água, do Fogo, do Ar e da Terra. Da Terra principalmente, dos nove, era o Planeta em que vivíamos. O sonho não conseguiu superar a realidade íntima de cada um de nós que trabalhamos no projeto. A Pedra do Ingá foi importante sem dúvida. Vendo-a me certifiquei de que há algo muito mais forte do que um simples homem em busca de poderes terrenos. Algo que derruba toda uma cultura acumulada e tornada inútil perante o enigma das paredes do Ingá. Contudo, não sou eu quem vai decifrar aqueles segredos místicos. Os meus próprios segredos me bastam e me invadem com bastante fúria já há algum tempo. Na realidade, tenho muitos segredos para contar. técnica e sentimento, mas por detrás sempre houve um quê de quem pede complemento para o verbo. Antes de Paêbirú, eu já tinha um trabalho próprio e coeso. E todo esse trabalho foi posto de lado para que compusessemos as músicas do álbum, que foi feito como ponto de partida para uma consciência musical no Pernambuco e na Paraíba. Essa coincidência ainda existe porque a semente fecundou e deu frutos, amargos porém digestivos, mas deu. Como se o agrupamento de pessoas que o realizaram estivessem numa linha de partida, uma partida para o real poder de cada um. O estágio com Lula foi bom no sentido de que fomos um exemplo de fazer um trabalho. Contra a cultura estereotipada de entendidos em "marketing", contra a crença dos que achavam uma brincadeira a idéia, Paêbirú pertence já ao tempo que o criou. Raul Córdula nos deu a informação da Pedra mas ele também não sabe seu significado, contudo foi uma pessoa que exerceu grande influência no trabalho. Eu particularmente não vou meu deter só à contemplar os sinais do tempo. Algum dia talvez esse trabalho seja descoberto por seres que o conheçam como fonte de pesquisa e de abertura musical, talvez ele entre para os museus que documentam o sul-generis do som em empreitadas como a nossa. Mas o que restou somente no final de tudo foi o fôlego de saber que Sumé e a Montanha do Sol estão perto. Cada vez mais longe.
Zé Ramalho da Paraíba.Contudo,não sou eu quem vai desvendar os segredos do Ingá.
sábado, 2 de abril de 2011
LULA CÔRTES, A MORTE LEVOU O CARA MAIS OUTSIDER DO ROCK DA TERRA DOS ALTOS COQUEIROS
"Penso nos martírios,todos os delirios loucos que vivenciamos, e vejo porquanto anos nos aventuramos querendo voar,voar prá sair de perto, de todo deserto, desses abandonos,e constatando o desengano se despedaçar..."
Nascido Luiz Augusto Martins Côrtes, Lula tem seu nome marcado na música popular brasileira por dois discos lançados na primeira metade da década de 1970, hoje lendas na internet pelo alto preço cobrados pelos vinis. Em 1972, ele gravou com o hoje cartunista Laílson o LP Satwa, pela Rozemblit. Em 1974, com Zé Ramalho, finalizou o álbum duplo Paêbiru - O Caminho da Montanha do Sol, disco antológico, referência máxima do experimentalismo musical nordestino dos anos 70. LP rico em investigação, onde flutuam elementos musicais infinitos (rock progressivo, psicodelia, música clássica, hard rock, e muitos ritmos e estilos nordestinos). Paêbirú é um reflexo das experiências musicais e existenciais de Zé Ramalho e Lula Côrtes no Cariri Paraibano, lugar lisérgico e místico pela sua própria natureza. Essas viagens nos legaram essa obra rara, em todos os sentidos,teve a participações dos melhores músicos da cena musical pernambucna: Lula Cortês, Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Ivson Wanderley "Ivinho", Zé da Flauta, Paulo Rafael, Lailson, Israel SementeMas a gravadora pernambucana, atingida por uma grande enchente, só conseguiu salvar poucas cópias, que se tornaram raridades. Ele ainda produziu e fez o desenho da capa de No Sub Reino dos Metazoários (de Marconi Notaro).
Os três trabalhos chegaram a liderar a lista de discos mais vendidos na categoria World Music quando foram lançados em 2008 nos Estados Unidos por uma gravadora independente, a Time-Lag Records. O relançamento em CD de Paêbiru no Brasil fazia parte dos planos de Lula Côrtes, que destacou ao Diario: "Na verdade, o disco não é só meu e de Zé Ramalho, é de toda a galera do movimento underground nordestino da época. Na ficha do Paêbirú, aparecem muitos nomes, como Alceu Valença e Geraldo Azevedo", afirmou.
Côrtes ainda lançou os discos O Gosto Novo da Vida, Rosa de Sangue, A Mística do Dinheiro, O Pirata, Nordeste, Repente e Canção e Lula Cortes & Má Companhia. Somente este último teve distribuição direta em CD. Além de músico, Lula Côrtes lançou obras de prosa e poesia, como o audiobook O lobo e a lagoa e livros como Hábito ao vício, Rarucorp, Bom era meu irmão, ele morreu, eu não e Amor em preto e branco e se dedicava atualmente às artes plásticas. Em reconhecimento ao seu trabalho literário, a União Brasileira dos Escritores de Pernambuco (UBE/PE) deu-lhe a carteira de sócio efetivo, retroagindo a ano de admissão a 1972, quando o multiartista lançou o Livro das Transformações.
Da sua experiência recente como assessor de Cultura da Prefeitura de Jaboatão, Lula extraiu matéria para pintar aquarelas retratando o cotidiano dos habitantes do município, seus aspectos ecológicos, o patrimônio material e imaterial da cidade. Sua meta era chegar a 365 peças. A primeira exposição, com 35 aquarelas, intitulada Fragmentos, foi aberta em setembro do ano passado.Lula Côrtes sofria de um câncer que começou na garganta há cinco anos, mas se espalhou por outros lugares do corpo. Ele tinha feito quiomio e radioterapia, mas de acordo com amigos próximos, continuava bebendo e fumava quase três carteiras de cigarro por dia. No mês de janeiro ele teve Hepatite C e, em seguida, erisipela, o que o deixou ainda mais fragilizado.
Ainda assim, o músico continuava trabalhando. Os últimos shows foram na semana passada - quinta, sexta e sábado - no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Ele e Zé da Flauta fizeram participações especiais no show de Alceu Valença, relembrando a década de 1970. Em um dos poemas,Procura,do amor em preto & branco,Lula Côrtes escrerveu:"Bem sei o que procuro há tanto tempo/eu busco a morte/como um guerreiro antigo em seu cavalo".