Manoel D'Almeida Filho
Neste ano de 2015, tendo o dia 8 de junho passado como marco, celebram-se 20 anos de morte de Manoel D'Almeida Filho, o clássico poeta do cordel brasileiro. Sabemos que o filho da Paraíba, radicado em Sergipe, foi um poeta predestinado. Nascido na grota mais profunda, às margens da antiga Lagoa do Paó, hoje Alagoa Grande, viu e ouviu cantadores e poetas de cordel viventes no cinturão do Brejo Paraibano. Sabia ele da passagem por lá de Francisco das Chagas Batista, um dos pais do cordel brasileiro, na construção da estrada de ferro. Também sabia de todo o arsenal poético que o cercava no berço. Sabia, ainda, do polo poético existente na cidade de Guarabira, e de sua crescente importância em termos de impressão de cordéis. Esse aparato já seria suficiente para presenteá-lo com um céu mais lírico, um chão mais épico, uma escrita mais crítica.
Aqueles que hoje apregoam um cordel rústico, inocente, “puro”, não conhecem a obra de Manoel D’Almeida. Rigorosíssimo com a qualidade dos seus escritos, trabalhava diuturnamente na confecção, buscando a excelência, rebuscando o vernáculo, colecionando as rimas, urdindo as narrativas. Se não bastasse toda essa inquietação poético-pedagógica, pois ensinava aos neófitos os preâmbulos cordelísticos e não poupava a palavra mais dura àqueles já macetados que incorriam em atropelos do verso, da rima, da língua, do estilo e da vida, se não bastasse isso, era chegado a um desafio peculiar: escrever longas narrativas, sem perder-se em repetições, nem capengar na criatividade. Assim, escreveu "O Direito de Nascer", inspirado na radionovela do cubano Félix Caignet, já adaptada para o Brasil, na época.
"O Direito de Nascer" é, talvez, o maior romance, em termos quantitativos, do cordel brasileiro com aproximadamente 700 sextilhas. Quando a Prelúdio o lançou, abrangia 65 páginas, em colunas duplas de 5 e de 6 estrofes, fazendo 10 e 12 estrofes por página. Se alguns poetas de hoje, muitos não conseguem escrever 30 e se autodenominam “cordelistas”, chegassem a ler esse romance de Manoel D’Almeida, certamente mudariam sua visão sobre o cordel. A narrativa de ficção alcançaria nele um alto grau de tensão, flutuando entre a tragédia e o lirismo. Mas entenda-se que o desafio em escrever longas narrativas era uma inquietação da alma do poeta. Tanto que escreveria o mais extenso poema sobre a vida do Capitão Virgulino Ferreira da Silva: Os Cabras de Lampião. Esse também, muito conhecido, mas pouco lido pelos seus pares poetas atuais.
Os Cabras de Lampião foi um marco e uma marca. A forma épica, narrando as agruras do velho ícone do cangaço sertanejo transformou-se em desafio também para os leitores, obrigados que eram a retornar, sempre, na leitura para entender e esclarecer as minudências dos fatos históricos protagonizados por Lampião e seu bando. Almeida detinha a chave do cordel e a fechadura da poesia. Era o guardião da porta poética, lubrificando suas dobradiças com novos títulos, guardando os longos parafusos de sua tradição. Foi o carpinteiro mais minucioso, assim como Leandro, não temendo as armadilhas, mas, como já disse, desafiando-as. Foi assim que, certa vez, fã de cinema e de histórias de aventura, lembremos das velhas séries do cinema hollywoodiano, que adaptou para o cordel as aventuras de capa e espada do famoso Zorro, o herói vestido de capa e espada abalando a ordem e humilhando o Sargento Garcia em A Marca do Zorro.
Mas eis que resolve escrever em cordel a sua visão da novela Gabriela, Cravo e Canela, transmitida pela televisão em 1975, adaptada do romance homônimo de autoria de Jorge Amado. Como não poderia deixar de ser, aventura-se pela narrativa longa para apresentar seu filtro sobre a cidade de Ilhéus, seus personagens em conflito e suas mulheres exuberantes, oferecendo o calor de seus seios e a sedução de seus corpos no amor pago, entre as paredes do obsequioso Bataclã. Todos e tudo comandados pela mão de ferro e pelo ferro na mão do poderoso Coronel Ramiro. A história corre solta no estilo precioso do autor cujo narrador, a serviço da boa narrativa, aparteia o leitor sempre que quer mudar a cena observada ou os fatos apresentados.
Gabriela alcança picos de extrema beleza poética entre as quais queremos destacar a preparação e o anúncio da morte do Coronel Ramiro. O coração de Manoel D’Almeida ofereceu à sua razão um traço profundo de delicadeza, mesmo marcado pela objetividade, surpreendendo o leitor com seus manejos imagéticos:
Todos saindo, Ramiro
Pensou haver resolvido
A sua vida política
No que tinha decidido.
Subiu para a sua alcova,
Sentindo o dever cumprido.
Pensou haver resolvido
A sua vida política
No que tinha decidido.
Subiu para a sua alcova,
Sentindo o dever cumprido.
Para dormir descansado,
Mandou abrir as janelas,
Suspendeu os cortinados
Que já não tocassem nelas
Para que, pela manhã,
O sol entrasse por elas.
Mandou abrir as janelas,
Suspendeu os cortinados
Que já não tocassem nelas
Para que, pela manhã,
O sol entrasse por elas.
Porque queria acordar
Debaixo do seu lençol,
Ao descobrir a cabeça
Ver o clarão do arrebol,
Sendo aquecido e beijado
Já pelos raios do sol.
Debaixo do seu lençol,
Ao descobrir a cabeça
Ver o clarão do arrebol,
Sendo aquecido e beijado
Já pelos raios do sol.
Adormeceu como um justo,
Porém, enquanto dormia,
Alheio à sua vontade,
Muita coisa acontecia,
A sua missão findava
Nunca mais se acordaria.
Porém, enquanto dormia,
Alheio à sua vontade,
Muita coisa acontecia,
A sua missão findava
Nunca mais se acordaria.
Dessa forma, com o desejo de o sol acariciar-lhe a pele enrugada da face, a morte lhe abraça e o romance em cordel encaminha-se para o seu desfecho. O Coronel Ramiro vai para sua última viagem. E, logo mais, dois acrósticos fecharão o poema: um em "Jorgeamado" e o outro em "Almeida". O desafio foi vencido e mais um poema veio aumentar a já vasta obra do sempre bom Manoel D’Almeida Filho.
Mas não é só: o ano passado foi o ano do seu centenário. Nascido em Alagoa Grande em 13 de outubro de 1914, D’Almeida estrearia no cordel em 1936 com uma narrativa ligada ao maravilhoso: "A Moça Que Nasceu Pintada, Com Unhas de Ponta e Sobrancelhas Raspadas", publicado em João Pessoa, quando era operário na capital paraibana. Depois, em 1940, vai morar em Aracaju, onde se estabelece. Em 1955, conhece o editor Arlindo Pinto de Souza, dono da Editora Prelúdio, de São Paulo, e transforma-se no selecionador de textos de cordel para a editora. Fica no posto até 1995, exercendo o papel mais significativo do mundo do cordel, lançando clássicos e encontrando novos autores, trabalhando nos textos para corrigir-lhes algum percalço poético e dando vazão a sua vasta criatividade. A Paraíba precisa conhecer sua obra e render-lhe a merecida homenagem.
Aderaldo Luciano
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