Chegança Potiguar
Batalhas navais entre mouros e cristãos travadas no início do milênio passado ainda são encenadas no Rio Grande do Norte. A época das Cruzadas originadas na Península Ibérica é revivida em canto e enredo. E não provém da recriação pontual baseada em pesquisas históricas de algum grupo teatral ou mesmo da voz aguda da maior romanceira do Brasil, a potiguar Dona Militana Salustino. Vem da Chegança – auto natalino; manifestação espontânea repassada entre gerações durante mais de mil anos até estes dias contemporâneos. O grupo reside hoje em Barra do Cunhaú, município de Canguaretama. Naquele pedaço do agreste potiguar, a Chegança resiste ao tempo e ao descaso como o mais genuíno do Brasil e o segundo grupo contemplado pelo benefício da bolsa vitalícia de R$ 1,5 mil, concedida pela Lei do Patrimônio Vivo.
A Chegança de Barra de Cunhaú é liderada há 30 anos pelo pescador Waldemir Marques dos Santos, 73 anos. Ao contrário do Fandango de Canguaretama, a Chegança foi originada fora do município. Foi o tio de mestre Waldemir, João Marques quem trouxe de Natal. João também era pescador. Por coincidência morava na Rua da Chegança, no bairro das Rocas. Foi lá onde recebeu visita ilustre de um tal folclorista e um dos expoentes da arte moderna brasileira. A visita de Mário de Andrade ao Rio Grande do Norte, nos idos de 1928, foi muito além do famoso encontro com o coquista Chico Antônio. O paulista também visitou grupos folclóricos do Estado. E um deles foi a Chegança comandada por João Marques, nas Rocas.
Foi Mário de Andrade quem afirmou: a Chegança nada tem, a rigor, de caráter nacional. Como afirma o presidente da Comissão Estadual de Folclore, Severino Vicente, o auto chegou em formas portuguesas e incorporaram características particulares que a diferenciaram de outros autos marítimos. A Chegança simula lutas entre mouros e cristãos pela posse da Península Ibérica. É uma versão brasileira, em especial, nordestina, originada das mouriscadas da Península Ibérica e Danças Mouriscas da Europa. “É quase todo cantado e bailado. Em rápidos intervalos de uma jornada para outra declamam e encenam uma luta entre as partes: uma representando os cristãos e outra os mouros infiéis. O acompanhamento é feito com instrumentos de percussão. Tarol, Caixa e bombo”, completa Severino Vicente.
A Chegança já foi das manifestações indispensáveis às comemorações do ciclo natalino. Usam uma barca e vestem fardas da Marinha Mercante brasileira. É um auto dramatizado. O enredo é ordenado em seqüência de cantigas náuticas de diversas épocas e origens. Algumas, de origem portuguesa. Retratam duelos de espada obrigando os infiéis a se renderem e invocarem o nome da Virgem Maria. Os figurantes recebem patentes e postos, entre os quais se destaca o Ração ou Despenseiro, dois Gajeiros, o Embaixador e o Rei Mouro. Iniciam o espetáculo entoando várias marchas, sendo esta uma das mais tradicionais:
Alerta, alerta quem dorme,
Olha a moça na janela;
Venha ver o mau tirano
Quando vai largando a vela.
Olha a moça na janela;
Venha ver o mau tirano
Quando vai largando a vela.
Ô meu Deus, que terra é aquela,
Terra de tanta alegria?
É o campo do rosário
Terra de tanta alegria?
É o campo do rosário
Assim como o Fandango, a Chegança carece de incentivos. Falta indumentária e, principalmente, interesse dos membros na continuidade do folguedo. Dos 40 componentes necessários à formação do auto, restam 25. “Faz mais de seis meses estamos parados. Tem quem queira brincar, outros desistiram. Antigamente se tinha mais gosto pra brincar. Hoje, preferem um agarradinho no salão”, lamentou mestre Waldermir durante visita de Severino Vicente e do folclorista Deífilo Gurgel, acompanhados pelo Diário de Natal, semana passada. Deífilo Gurgel sugeriu ao mestre encurtar as três horas de apresentação para tornar a encenação mais atrativa aos turistas e mais viável em eventos. “Quem quiser escutar ou ver as jornadas inteiras eu tenho tudo gravado, devidamente registrado”, argumenta o folclorista.
Severino Vicente alerta: “Sobretudo países emergentes são mais visados pela cultura massificada. É o momento de valorizar a identidade cultural. O folclore, a cultura popular deve estar na escola, na comunidade. Quanto mais alienação mais fácil a manipulação pelos grupos do mercado de ilusões, da cultura do entretenimento, vazia”. Severino recorda tempos mais compromissados com a cultura popular no Estado, quando o próprio Deífilo estava à frente do Centro de Promoções Culturais da Fundação José Augusto, na gestão do escritor Valério Mesquita. “Dei preferência à cultura popular sem esquecer a erudita. Documentei durante anos o que vi in loco”, lembra Deífilo. E completa: “Como dizia Cascudo, a cultura popular é a mais importante das culturas”.
Por Sergio Vilar
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