Jan Ribeiro
Mamulengueiro Zé Lopes é Patrimônio Vivo de Pernambuco
Reconhecimento do Governo do Estado vai facilitar a transmissão dos saberes do mestre, considerado um dos nomes mais representativos da tradição do mamulengo e um dos mais antigos em atuação.
por Marina Suassuna
José Lopes da Silva Filho, conhecido como Mestre Zé Lopes, nasceu no dia 21 de outubro de 1950 na cidade de Glória do Goitá, Zona da Mata Norte de Pernambuco. O primeiro contato com a brincadeira do mamulengo foi aos 10 anos de idade. “Eu ia no mamulengo com minha mãe, ajudá-la a vender bolinhos e me apaixonei pelos bonecos. Eu era um garoto tímido e os bonecos tiraram essa timidez. Minha mãe dizia que ser mamulengueiro não era profissão. Ela queria que eu fosse engenheiro mecânico e eu já pensava: tem um mundo lá fora pra o mamulengo conquistar. E realmente teve e ainda tem”, diz o mestre, que agora é Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Uma das formas de teatro popular mais genuinamente brasileira, o Mamulengo consiste na manipulação de bonecos de madeira com um notável senso de improvisação. A brincadeira tem uma estrutura própria, da qual fazem parte histórias, lendas, linguagens próprias, personagens fixos, pancadarias, música e dança. Inspiradas na literatura de cordel, as histórias são repassadas de geração para geração, sem perder a comicidade.
Reconhecido como um dos mestres mais representativos da tradição do mamulengo e um dos mais antigos em atuação, Zé Lopes foi agraciado pelo Iphan com o Prêmio Teatro de Bonecos Popular do Nordeste - Mamulengo, Cassimiro Coco, Babau e João Redondo e, recentemente, com o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia.
Foi em 1962, aos 12 anos de idade, que ele criou o primeiro boneco: “Conheci vários mamulengueiros, mas não bonequeiros. Eu quis ser as duas coisas e tive que descobrir e entender a diferença entre eles por conta própria. Bonequeiro é quem produz, quem elabora os bonecos e o mamulengueiro é quem apresenta a brincadeira. Eu também apresento boneco dos outros, mas é melhor lidar com o seu filho. Pois já sabemos a personalidade dele, o peso, o cheiro, o suor. O boneco, quando você faz e sente que terminou, ele já é corpo e alma. Foi uma dificuldade aprender a fazê-los, saber qual madeira usar, qual a tinta, como era que ele se vestia. Tive que descobrir sozinho e hoje eu tenho essa alegria e esse prazer de sentar e poder repassar.”
MAMULENGO TEATRO DO RISO
Foi também em 1962 que surgiu o primeiro grupo do qual participou, o Mamulengo São José, composto por 5 pessoas, incluindo dois tios de Zé Lopes. O grupo atuou até 1971, quando o mestre deixou Glória do Goitá e foi morar em São Paulo. Durante esse período longe de sua terra, exerceu outras profissões, mas não deixou de fazer os bonecos e contar as histórias do Mamulengo, pois sempre pensava em retornar à sua terra natal. ”Eu não conto que eu passei oito anos afastados da arte porque mamulengo é como bicicleta: aprendeu a andar, não desaprende mais. Foi importante pra mim ir pra São Paulo, trabalhei como metalúrgico e conheci várias outras áreas, mas nunca deixei de ser mamulengueiro. Eu não estava com os bonecos lá, mas continuava contando as histórias, as loas, ensinando e sendo mamulengueiro.”
Ao retornar para Pernambuco em 1982, encontrou o Mamulengo esquecido. Muitos mestres tinham deixado de brincar por falta de apoio, inclusive o Mestre Zé de Vina, um dos mais antigos mestres mamulengueiros do Estado. Em Glória do Goitá, hoje reconhecida como “a capital do Mamulengo”, a brincadeira estava proibida por questões políticas. Depois de muita luta, conseguiu retomar seu grupo e mudou o nome para Mamulengo Teatro Riso. A estreia foi no dia 02 de dezembro de 1982, na festa do Levantamento da Bandeira de Nossa Senhora da Conceição.
A primeira formação do Mamulengo Teatro do Riso foi composta por amigos que
sempre acompanharam a história do Mamulengo. A brincadeira era como um complemento à renda familiar, pois não era possível viver exclusivamente dessa arte. Vários outros mamulengueiros tinham suas profissões, comumente ligadas à agricultura e faziam a brincadeira por amor. Vale a pena ressaltar que, naqueles tempos, a brincadeira não era valorizada e nem reconhecida como arte. Hoje, seus filhos Cirleide Nascimento (Cida Lopes), Larissa Nascimento e sua esposa, Marinês Tereza, são os integrantes do Mamulengo Teatro Riso. Todos eles aprenderam a brincadeira, a confecção de bonecos, montaram também seus próprios grupos e hoje se apresentam com o desejo maior de dar continuidade a esse trabalho, preservando sua tradição.
Ao longo desses 34 anos, o Mamulengo Teatro Riso já se apresentou e realizou oficinas em festivais em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Olinda, percorreu todo o território brasileiro com o SESI Bonecos do Mundo, além de ter representado o Brasil em países como Espanha, Portugal e Itália.
RECONHECIMENTO
Hoje, com seus 66 anos, Mestre Zé Lopes continua repassando os seus saberes e sua vivência como Mestre Mamulengueiro, ministrando oficinas de confecção e manipulação de bonecos em escolas, associações, festivais e museus pelo Brasil e pelo mundo, além de ser objeto de estudo de inúmeros pesquisadores da arte popular, tendo contribuído diretamente com o trabalho de estudiosos de diversas instituições. “Esse reconhecimento de Patrimônio Vivo chegou num momento muito bom da minha vida, foi muito importante pra eu continuar repassando a minha história.”
Zé Lopes percorreu quase todo o território brasileiro e alguns países da Europa disseminando a rica tradição do mamulengo. ”Tive a chance de ir pra Portugal duas vezes, Espanha, Itália. Sou muito agradecido ao SESI, que me fez conhecer o Brasil inteiro e também à Fundarpe, que realizou o primeiro Encontro de Mamulengueiros, em 1985. Foi quando eu conheci outros bonecos e muitos mestres. Foi o pontapé inicial pra eu continuar nessa luta.”
O seu trabalho também pode ser visto na minissérie global A Pedra do Reino, escrita por Ariano Suassuna e dirigida por Luiz Fernando Carvalho e no cinema, no filme Abril Despedaçado, de Walter Salles. “Ver o mamulengo na televisão, no teatro, sendo usado como objeto de pesquisa, entrando nas escolas, coisas que antes eram ignoradas, me deixa feliz da vida. Pois o mamulengo não é só pra o pessoal lá do sítio ficar ouvindo as piadas dos bonecos, tomando um gole de cachaça. O mamulengo faz pessoas de todas as idades riem. A criança vira adulto diante dos bonecos. Pois elas é que resolvem as confusões dos bonecos, então a criança já mostra uma capacidade de resolver problemas, isso é muito importante. A criança se sente responsável por aquele ato, por aquilo que ela viu. E o adulto se transforma numa criança, fica abobalhado”, reflete.
Zé Lopes contribuiu, ainda, com a formação de muitos bonequeiros, entre eles Cida Lopes, Larissa Nascimento e Marinês Tereza, que fundaram o Mamulengo Alegria, atualmente em plena atividade. É responsável, ainda, por coordenar o Centro de Revitalização e o Memorial do Mamulengo, criado pelo Só Riso em Glória do Goitá.
A ALMA DA BRINCADEIRA
“O boneco quando chega, quer aparecer. O boneco tem muita malícia. Quer ver o mamulengo ficar arrasado? Se ninguém provocar o boneco. É uma brincadeira que o público tem que se meter”, explica o mestre. De acordo com o registro de alguns pesquisadores, atualmente o mamulengo pernambucano dispõe de 120 bonecos, todos provenientes da Zona da Mata, de Glória do Goitá e Vitória de Santo Antão.
“Uma coisa muito importante do boneco é que ele tem a capacidade de explicar melhor. Quando participo de alguma campanha de saúde, ninguém vai ignorar a linguagem do boneco. É diferente de chegar um doutor ou uma doutora pra falar. Se ele fala sobre alguma coisa de grande responsabilidade, como a prevenção ao vírus da Aids, e dez pessoas escutam, daqui a pouco mais de cem sabem aquela história certinha e repassam tudo que o boneco falou. Porque as pessoas escutam o boneco, dão razão a ele. O boneco faz com que as pessoas gravem as informações. Tudo que ele fala fica perpetuado.”
Para isso, Zé Lopes diz que o mamulengueiro não pode aperfeiçoar a linguagem, “senão o povo não entende o que ele quer dizer. Simão, por exemplo, é um personagem que chamava a mãe dele: ôôô mãããeee… Hoje ele já pega o celular pra discar pra mãe e assim a gente vai contando a história de Simão com um toque moderno, mas sem tirar a música tradicional. A gente não pode botar muito moderno, pra não tirar a essência, o cheiro da historia do personagem.”
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