Cidade: Petrolina
Atividade/expressão cultural: artesã ceramista
Do extremo oeste pernambucano, espiando as terras do Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de sobrevivência e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso: inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923, no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador. Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany, outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria Leopoldina dos Santos.
Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu, cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja, moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos. A vida não era fácil naquelas terras do Sertão do Araripe, em que alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por este motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina em busca de um oásis.
Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela, pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de 1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante, e para sempre, pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome artístico que correu mundo: Ana das Carrancas.
A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e, claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, esta invenção “deu sorte”. E assim, de tão bem sucedida, a cangula ganha réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também trouxeram sorte: carranca cinzeiro, com três caras, jardineira, totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente, alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso, distribuídas a título de souvenir.
Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela Aparecida de Lima e Maria da Cruz Santos modelam esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava, orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”.
Em 2006, Ana das Carrancas recebe o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Dois anos mais tarde, vem a falecer aos 85 anos, tendo transmitido seus conhecimentos a suas filhas que dão continuidade à marca da “dama do barro”.
Fonte: Amorim, Maria Alice (2014),  Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev. e amp – Recife: FUNDARPE.