segunda-feira, 23 de agosto de 2021
A RESISTÊNCIA FISICA DOS HOMENS DO CANGAÇO
Artigo de Luiz Luna, publicado no Diário de Notícias (RJ) em 09/07/1961
O que impressiona nesses homens (tanto soldados como cangaceiros) é a extraordinária resistência física. Levando vida de nômade, vencendo quilômetros e quilômetros na caatinga adusta, subindo e descendo serras e tabuleiros, enfrentando e dominando a hostilidade violenta dos carrascais agressivos, resistiam a tudo. Não consta (procuramos, inclusive, investigar o caso, através de depoimentos de participantes e contemporâneos) que um só cangaceiro ou soldado das “volantes” houvesse morrido de outra enfermidade, a não ser em consequência de bala.
Muitos, porém, entre eles o próprio Lampião, diversas vezes alvejado, sobreviveram aos ferimentos, alguns graves, sem contudo receberem assistência médica adequada.
Os meios de tratamento e as condições de higiene eram, como se pode imaginar, os mais precários e rudimentares. Na época, desconhecia-se o poder das sulfas e dos antibióticos e os cangaceiros, por sua vez, não se davam ao luxo de procurar médicos ou mesmo farmacêuticos para curar as suas feridas. O tratamento fazia-se entre eles, com o conhecimento que tinham de medicina caseira e outros que as necessidades ensinavam. Para estancar o sangue, usavam pó de café, mofo e até excrementos de gado empregavam para fazer sarar os ferimentos. Ervas ditas medicinais, que brotam espontaneamente nos baixios e vazantes, eram largamente usadas.
Havia também as rezas, invocadas profusamente para curar todos os males do corpo e da alma. Os curandeiros proliferavam por toda a zona sertaneja, como de resto acontecia em todo o Nordeste, sempre desprovido de assistência médica. Curiosos, dotados de extraordinário dom de improvisação e imitação do homem nordestino, encontram-se com facilidade em todos os recantos da região. Lampião mesmo era um deles. Servia de parteiro às mulheres do bando, como já assinalamos neste trabalho, e também encanava braços e pernas, fazia pequena cirurgia e tratava dos ferimentos dele e dos companheiros.
Eram, pois, fisicamente fortes os homens envolvidos nas lutas do cangaço e isso está comprovado pela resistência orgânica que demonstraram em tantos anos de campanha cruenta. Tanto os cangaceiros como os soldados das “volantes” eram, em geral, tipos longilíneos, magros, mas de compleição atlética. Os tipos brevilíneos do litoral e da zona da mata, quando alistados na Polícia Militar, nunca eram destacados para as forças “volantes”, integradas de preferência por homens da área sertaneja, mesmo porque muitos deles se tornavam soldados com o fim deliberado de perseguir cangaceiros, por motivos de vingança, decorrentes, da maioria das vezes, de brigas entre famílias. Muitos desses soldados, homens bravos e decididos, atingiram o oficialato, como é o caso do coronel Manuel Neto, major Manuel Flor, capitão Guedes e tantos outros, cujas promoções se deram sempre por atos de bravura.
Naturalmente que a alimentação sóbria e mais sadia do que a dos nordestinos das demais zonas, influiu de modo considerável na resistência orgânica do homem do sertão. Talvez repouse nisso o segredo da resistência física do cangaceiro e do soldado das “volantes” ao enfrentarem condições tão adversas em suas constantes lutas e andanças.
Não nos consta que houvesse um cangaceiro ou um soldado (pelo menos nunca os vimos nem os soubemos assim) que apresentasse o tipo adiposo que geralmente encontramos na área do açúcar ou que apresentasse, como é comum na faixa verde dos canaviais, sintomas de certas doenças, que costumam deixar as marcas da sua destruição nas pernas inchadas, no ventre empanzinado (a chamada “barriga” d’água) ou nas feridas, como “boba” e “boqueira”, enfermidades facilmente encontradas na população do Nordeste açucareiro. No sertão, não se vê o tradicional homem pequeno e amarelo do litoral e da zona da mata, de pernas bambas e barriga grande, que o folclore glosou na faixa rural do município de Goiana, em Pernambuco:
“Amarelo de Goiana
Come sapo com banana.”
O sertanejo é um tipo delgado e enxuto e assim foram os homens que se envolveram nas campanhas do cangaço.
Soldados e cangaceiros comiam a mesma comida do sertão, na base do milho e da carne, do leite e da rapadura. Fruta quase não entra na dieta dos sertanejos e muito menos verdura, que ele mesmos costumam dizer que “homem não é coelho para comer folhas”. Os cangaceiros, mais do que os soldados, em vista da ilegalidade da vida que levavam, lutavam com maior dificuldade no setor da alimentação. Como verdadeiros nômades, hoje aqui, amanhã acolá, carregavam o alforje de alimentos, juntamente com o rifle e o bornal de balas. No alforje, levavam carne de sol, geralmente de bode, carne de charque, farinha de mandioca e rapadura; café, bolachas, milho pilado e requeijão, que comiam cru ou assado. Associando o milho ao leite, faziam o cuscuz e o angu e, ao fruto do umbuzeiro, a “umbuzada”, alimento muito apreciado no sertão nordestino.
Nos armazéns e nas feiras, das vilas por onde passavam, nas casas-grandes das fazendas e nos “coitos”, que os acolhiam, faziam a provisão para a boca e para o rifle. Nos bons “coitos”, regalavam-se.
Parte da histórica milícia Nazarena: Gervásio de Souza Ferraz, Raul Ferraz, Manoel Concordio, Manoel Ferraz, Antonio de Belo, Olegario Pereira na Fazenda Curral Novo, Floresta-PE.
Comiam carne fresca de boi, de cabrito ou de carneiro e secavam ao sol o restante para o sustento nas caminhadas incertas. Das vísceras do cabrito ou do carneiro, preparavam as deliciosas “buchadas”, que comiam acompanhadas de alguns tragos de aguardente, vinho e cerveja quando encontravam. Mas, com moderação, pois cangaceiro não podia se exceder em bebidas, diante dos perigos a que estavam expostos e que exigiam de sua parte toda atenção e precaução. Lampião, que era infenso ao álcool, mantinha os cangaceiros no regime de pouca bebida e punia severamente os que se excediam.
Com carne e leite frescos, queijo e coalhada, comidos nas fazendas amigas, durante os dias de descanso, os cangaceiros restauravam as energias para novas caminhadas e novos combates. Curioso é que muitos preferiam o leite de cabra ao de vaca e alguns até o de ovelha, que diziam “dar mais sustança e disposição ao corpo”.
Acontece que com uma alimentação, aparentemente sem substância, cangaceiros e soldados das “volantes” conseguiram sobreviver às enfermidades que a carência alimentar provoca. Nas fases de maior perseguição, quando não conseguiam se locomover com a relativa facilidade rotineira completavam a dieta com raízes e frutos silvestres, especialmente o piqui e o umbu, sendo que a raiz do umbuzeiro ainda lhes mitigava a sede, dada a grande porcentagem de água, que contém. Não comiam tanto açúcar nem se empanturravam de gordura como os homens do Nordeste açucareiro. Com alimentação enxuta, pobre dos molhos que dão sabor especial à cozinha das casas-grandes dos engenhos, mas capaz de equilibrar, relativamente, o metabolismo basal, o cangaceiro, como acontece com todos os sertanejos, conservava o organismo em condições de resistir às constantes perdas de energias, que as suas ingentes atividades provocavam.
Ao pressentirem a época das grandes estiagens, procuravam locais mais favorecidos, principalmente na região sanfranciscana de Sergipe, onde a seca custa a chegar e, assim, nos “coitos”, que consideravam seguros, aguardavam melhores dias para novas investidas no coração sertanejo. Foi depois de um descanso desses, que Lampião e seus cabras entraram em Queimadas, no sertão da Bahia.
Transcritopor Antonio Correia Sobrinho
Fonte:Kiko Monteiro-Lampiaoaceso.
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