domingo, 20 de setembro de 2015


Cordel e repente



O DESAFIO DA PACA CARA, DE CEGO ADERALDO

Outro dia alguém me perguntou a diferença entre cordel e repente. Respondi, sem pensar muito, que o cordel é a poesia popular que se caracterizou como tal pelo fato de ser publicada em folhetos, enquanto o repente é a poesia feita pelos cantadores, os quais geralmente recebem da platéia um tema, chamado MOTE, e o desenvolvem na hora. Também é muito comum os repentistas fazerem desafios, nos quais cada um exalta suas qualidades e depreciam o colega.

Um desafio famoso é aquele que teria ocorrido entre o Cego Aderaldo e Zé Pretinho, quando Aderaldo deixa difícil a situação de Zé Pretinho com o trava língua da “Paca Cara”. Vejamos um trecho:


Zé Pretinho (P.)

— Eu vou mudar de toada,

Pra uma que mete medo

— Nunca encontrei cantador

Que desmanchasse este enredo:

É um dedo, é um dado, é um dia,

É um dia, é um dado, é um dedo!


Cego Aderaldo (C.).

— Zé Preto, esse teu enredo

Te serve de zombaria!

Tu hoje cegas de raiva

E o Diabo será teu guia

— É um dia,é um dedo, é um dado,

É um dado, é um dedo, é um dia!

P.
— Cego, respondeste bem,

Como quem fosse estudado!

Eu também, da minha parte,

Canto versos aprumado

— É um dado, é um dia, é um dedo,

É um dedo, é um dia, é um dado!


C.
— Vamos lá, seu Zé Pretinho,

Porque eu já perdi o medo:

Sou bravo como um leão,

Sou forte como um penedo

É um dedo, é um dado, é um dia,

É um dia, é um dado, é um dedo!

P.
— Cego, agora puxa uma

Das tuas belas toadas,

Para ver se essas moças

Dão algumas gargalhadas

— Quase todo o povo ri,

Só as moças 'tão caladas!

C.
— Amigo José Pretinho,

Eu nem sei o que será

De você depois da luta

— Você vencido já está!

Quem a paca cara compra

Paca cara pagará!

P.
— Cego, eu estou apertado,

Que só um pinto no ovo!

Estás cantando aprumado

E satisfazendo o povo

— Mas esse tema da paca,

Por favor, diga de novo!

C.
— Disse uma vez, digo dez

— No cantar não tenho pompa!

Presentemente, não acho

Quem o meu mapa me rompa

— Paca cara pagará,

Quem a paca cara compra!

P.
— Cego, teu peito é de aço

— Foi bom ferreiro que fez

— Pensei que cego não tinha

No verso tal rapidez!

Cego, se não é maçada,

Repete a paca outra vez!

C.
— Arre! Que tanta pergunta

Desse preto capivara!

Não há quem cuspa pra cima,

Que não lhe caia na cara

— Quem a paca cara compra

Pagará a paca cara!

P.
— Agora, cego, me ouça:

Cantarei a paca já

— Tema assim é um borrego

No bico de um carcará!

Quem a caca cara compra,

Caca caca cacará!

Eis aí um desafio, feito no Repente, que, salvo engano, depois foi publicado em cordel.
O fato que as duas expressões da poesia popular - cordel e repente - têm muito em comum, usando muitas vezes as mesmas formas, com decassílabos ou sextilhas, e abordando toda espécie de assuntos. Sem contar que às vezes o cordel é feito em tal velocidade, que é quase um repente.

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