Cavalgada até o centro do universo
Por Leonardo Vila Nova
Um estampido de fogos de artifício irrompeu no céu de São José de Belmonte pouco antes das 5h da manhã deste domingo (26/5). Era sinal de que o dia amanhecia diferente na cidade. Era sinal de que, neste dia, era mais um dia de Cavalgada. O destino: a famosa Pedra do Reino, na Serra do Catolé, consagrada como o principal ponto de encontro entre misticismo e teatro popular, que se fundem para contar o momento mais marcante da história daquele povo. Nesta gigantesca pedra, entre 16 e 18 de maio de 1838, numa batalha entre João Ferreira, lunático líder sebastianista, e a Guarda Nacional Brasileira, cerca de 80 pessoas (entre elas, 30 crianças) foram sacrificadas/assassinadas, numa matança sem precedentes, fruto do fundamentalismo que conduziu grande parte dos corações e mentes daquele Nordeste do século XIX.
Desde 1993, no último domingo de maio, São José do Belmonte assiste ao trajeto de 27 km que leva centenas de cavaleiros, amazonas e vaqueiros ao local da tragédia, para reverenciar esta data. A XXI Cavalgada à Pedra do Reino parou a cidade, como vem sendo há mais de duas décadas. Uma das fontes de inspiração da manifestação é também o consagrado “Romance d’A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, que faz a ponta perfeita entre a história de origem ibérica e a tradição do povo sertanejo.
Quando o Sol ainda descortinava na cidade, uma multidão já se aglomerava em frente à Igreja Matriz da cidade, aguardando a tão esperada corte, dividida nas cores cores azul (cristãos) e encarnado (mouros). Sob mais uma salva de fogos de artifício, Rei e Rainha chegam ao local, causando profunda comoção nos populares que lotavam o local. O Coral de Aboiadores de Serrita deu o tom sertanejo à cerimônia, recepcionando a corte, com canções que simbolizam o imaginário do homem nordestino. “Asa branca”, o hino nordestino, sacramentou os filhos de Belmonte. E com a tradicional bênção do pároco da matriz, os cavaleiros partiram, ao som de “Catinga sebastiana” (Ariano Suassuna). De fato, não há como descrever o que se sente neste momento. Palavras fogem, enquanto sentimentos transbordam, sem qualquer economia.
Olhos fechados durante a bênção, as mãos firmes empunhando as rédeas dos cavalos e lágrimas flagrantes sobre o rosto deram o tom desse momento tão marcante. Sob os aplausos da população, os representantes da Cavalgada partiram para um trajeto tortuoso, onde a fé e a força de vontade são testadas a cada momento. A estrada de barro seco, que faz subir uma poeira interminável, tendo o Sol como testemunha e os morros já verdejantes – indicando que a chuva já chegara ao Sertão -, são o cenário que compõe a mística jornada. Em cerca de seis horas de percurso se desvela a tão afamada coragem do homem nordestino. Não há obstáculo que a fé e a determinação não vençam. E o destino vai, a cada passo dos cavalos, se descortinando adiante.
Para chegar à Pedra do Reino, não basta somente ir a cavalo. Carros, motos, bicicletas, todos os meios estão à disposição daqueles que querem presenciar o espetáculo. Há 20 anos, quando a Cavalgada deu os seus primeiros passos, não se sabia exatamente por onde ir. Uma das pessoas que indicou, literalmente, “o caminho das pedras”, foi o empresário Aníbal Leonel, que mostrou aos criadores da cavalgada como se chegava ao local. “Eu moro próximo à Serra do Catolé e me perguntaram como se chegava ao local. O acesso só era possível com poucos cavalos e somente dois carros. Esse foi o primeiro passo. A partir daí, o evento foi se sedimentando e foi se tornando cada vez mais grandioso. Hoje temos mais de mil pessoas que vêm a esse local, conhecer essa história que marcou não só o estado, mas todo o Brasil. É lindo ver essa minha cidade significar tanto para todas essas pessoas“, contou Aníbal.
E o tão profundo significado e importância da Cavalgada estavam presentes no rosto de cada pessoa que cessou o piscar de olhos quando Rei e Rainha adentraram a Serra do Catolé, seguidos de sua corte. Gritos, aplausos, reverências e músicas recepcionaram os personagens mais importantes desse enredo. À frente de todos, Valquíria Novaes, a bela jovem de 18 anos, escolhida como rainha desta edição da Cavalgada. Um sorriso cativante e a inabalável segurança às rédeas do seu cavalo demonstraram a grandeza do símbolo que ela representava ali. “Eu encaro com uma alegria muito grande representar a minha cidade e o povo sertanejo nesta Cavalgada. Trazer de volta a valorização dessa história não acaba apenas hoje, mas seguirá comigo enquanto eu viver e na história de Belmonte, em todas as rainhas escolhidas nos próximos anos“, disse Valquíria, que se revezava entre responder às perguntas e o intenso assédio da população, ávida por fotos junto à atual majestade.
Outra parte desse espetáculo está devidamente representada nos cavaleiros que seguem a jornada até a Pedra do Reino. Homens sertanejos que dedicam parte da sua vida a seguir por entre estradas difíceis – na vida e na cavalgada – e alcançar um destino. Seja em reverência àquelas pessoas que sacrificaram a sua vida em nome da sua fé ou àqueles que lutam para vencer as batalhas cotidianas diante das agruras da vida. Um desses cavaleiros acompanha a cavalgada, ininterruptamente, desde a sua primeira edição. Desde 1993, Clênio Barros veste o seu gibão e segue até a Pedra do Reino. Dois anos após o debute, ele porta a bandeira de Pernambuco, e dela nunca mais se desgarrou. “A capitania hereditária de Duarte Coelho há 21 anos é minha. A bandeira mais linda do mundo está comigo e ela eu não largo. Tenho um carinho muito grande por ela“, declarou Clênio. “Eu estou e sempre estarei totalmente integrado à Cavalgada. Quando, um dia, não existir mais um cavaleiro na Cavalgada, eu estarei lá, mantendo essa tradição. É uma coisa que não há explicação. Se sente, se vive. É o amor maior da minha vida“, confessou, com um sorriso que nenhuma recompensa material pode comprar e reportagem alguma irá explicar. No próximo ano, a XII Cavalgada à Pedra do Reino aguarda você, que leu este humilde (e impressionado) relato.