CARRANCAS DO SÃO FRANCISCO
Já não se encontram mais nas proas das embarcações são-franciscanas as célebres carrancas - uma das mais genuínas e enigmáticas manifestações da arte popular brasileira -, cuja forma predominantemente zooantropomorfa se mostra de uma originalidade sem similar na história das navegações. Mesclando detalhes humanos com os de animais, destes sobretudo a generosa cabeleira à semelhança de uma juba de leão, elas apresentam em geral uma expressão de ferocidade. São feitas de um único tronco de madeira e retratam apenas a cabeça e o pescoço de alguma figura mitológica indeterminada. Enquanto as carrancas desaparecem das embarcações, paradoxalmente sua produção apresenta um visível crescimento, algumas esculpidas ainda por autênticos artistas primitivos, mas também grande parte delas feitas sob encomenda por imitadores com o objetivo de comercialização, destinando-se à venda aos turistas que vêm descobrindo nos passeios pelo rio São Francisco uma nova e atraente opção de lazer. Nem faltam contrafacções executadas em barro, desvinculadas, portanto, da tradição das genuínas figuras de proa. As carrancas transformaram-se, assim, em disputados objetos de decoração, fato que tem, aliás, o mérito de não deixar morrer a lembrança dessas curiosas esculturas, cujos exemplares históricos de notável valor encontram-se hoje bem longe das águas do rio, quase totalmente em mãos de colecionadores ou fazendo parte do acervo de museus brasileiros e do exterior. A presença de carrancas nas embarcações do São Francisco surgiu aproximadamente há um século, pois datam de 1888 as primeiras referências a elas, em obras de Antonio Alves Câmara e de Durval Vieira de Aguiar", delas não se encontrando a menor citação no minucioso relatório de Halfeld em 1860, mesmo quando esse autor se detém a descrever detalhadamente os diversos tipos de embarcação encontrados nos três anos em que viajou pelo rio. A origem das carrancas parece ter por base interesses eminentemente comerciais. Devido à dependência das populações ribeirinhas em relação aos suprimentos transportados pelo rio, era natural a disputa de prestígio por parte dos proprietários das embarcações, do que resultariam sem dúvida uma freguesia maior e maiores lucros. A originalidade evidente do primeiro enfeite de proa teria, assim, despertado logo a emulação dos demais proprietários, os quais viriam a estimular a confecção e o desenvolvimento de carrancas também para fazer frente à concorrência dos vapores que começavam a sulcar o grande rio. Paulo Pardal, autor da mais completa monografia sobre essa arte popular do São Francisco, perfilha a idéia de que a disputa comercial generalizou o uso das carrancas, mas não crê ser isso a razão do surgimento da primeira. No seu entender, os motivos foram apenas "os de prestígio e indicação de propriedade, por imitação de carrancas antropomorfas, vistas por algum fazendeiro do São Francisco, em navios aportados no Rio de janeiro ou em Salvador. Para que, ao longe, os ribeirinhos identificassem a barca pelo busto de seu poderoso proprietário à proa". De ornamento das barcas passou-se também a atribuir a essas curiosas figuras de proa a função mágica de afugentar maus espíritos - atribuição devida não só a uma pequena minoria de ribeirinhos, pois a maioria dos barqueiros prefere desconhecer semelhante opinião, mas também a narradores fantasiosos, que encontraram na função totêmica uma fácil explicação para a obscura origem de tal manifestação espontânea da arte popular. As carrancas do São Francisco constituem, como bem observa Paulo Pardal, "uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas as individualidades de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época. Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do País e do mundo, cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam um verdadeiro impacto. " Dos carranqueiros do São Francisco, o mais notável foi Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, que em mais de meio século de produção esculpiu uma profusa quantidade de peças e revelou-se, em cada uma, um artista de refinada sensibilidade e criador de soluções originais. Nascido em 1884, na cidade de Santa Maria da Vitória, na Bahia, Guarany nunca deixou por longo tempo a cidade natal, tendo aí esculpido sua primeira carranca exatamente em 1901. Sua fecunda produção apresenta a característica, entre outras que não cabe considerar, de atribuir a cada peça um nome original e próprio, baseado muitas vezes em animais pré-históricos, na mitologia indígena ou apenas em sua rica imaginação: Galocéfalo, Chipam, Medostantheo, Igatoni, Capelobo, Curupema, Aratuy, Salaô, Melozán, Zezê, Caipora, Pirajá e tantos outros. Guarany, pode-se afirmar, foi o único profissional no gênero, pois, embora diversos misteres tenham-lhe tomado boa parte do tempo, a produção de carrancas permaneceu constante ao longo de sua vida.O mesmo já não acontecia com os demais, que, mesmo tendo criado peças de inegável valor artístico, nunca mantiveram maior regularidade de produção nem puderam viver exclusivamente desse trabalho. Cite-se, por exemplo, Davi Miranda, conhecido escultor de carrancas em Pirapora e autor de belíssimas, peças; carrancas, só durante as horas vagas. Em sua destinação primitiva de figuras de proa, as carrancas restringem-se a um curtíssimo período histórico - menos de um século -, constituindo, portanto, também sob esse aspecto, uma manifestação artística excepcional. 0 que resta agora são extrapolações ou variações em torno o mesmo tema - que não lhes diminui necessariamente - o valor, pois não faltarão, para essa nova idade das carrancas em que se tornou dispensável o batismo das águas do rio, soluções originais que evitem o esvaziamento de seu conteúdo artístico.
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