TORQUATO NETO
Num dos últimos dias de maio, o compositor Ronaldo Bastos saiu correndo de casa, no Flamengo, atrasado para um compromisso. Ia gravar um depoimento para o documentário “Torquato Neto — Anjo torto”, do produtor musical Marcus Fernando e do diretor Eduardo Ades, sobre a vida e a obra do jornalista, poeta, compositor, ator e cineasta morto em 1972 e que foi um dos principais expoentes da Tropicália. Pouco antes de bater à porta, já emocionado, Ronaldo publicou uma imagem rara no Facebook — um poema que Torquato mandou para ele de Paris, onde vivia, em setembro de 1969. Na folha amarelada, as letras datilografadas do amigo formavam versos como “quarenta a sete quilates/ sessenta e nove tragadas/ vinte e sete sonhos, noites/ calmas, desperdiçadas” ou “saiba, Ronaldo, acontece/ uma vez em qualquer vida: nas teias que a gente tece/ abrem sempre uma ferida/ no canto esquerdo do riso?/ no lado torto da gente?/ talvez/ o que mais forte preciso/ não sei sequer se é urgente”.
A cantora Joyce, amiga de ambos, foi a primeira a comentar a publicação: “Dá samba”. O músico Celso Fonseca emendou, logo abaixo: “Ai ai. Posso?”. Do celular, a caminho da filmagem, Ronaldo opinou: “Celso, quem sou para dizer se pode ou quem deve musicar, mas, nesse caso, acho que está mais para a Joyce” (em algum texto perdido no seu acervo, Torquato mencionava o desejo de uma parceria nunca realizada com a cantora, mais especificamente, um rancho). No dia seguinte, Joyce anunciou: “Dito. E feito. Ele queria um rancho, um rancho saiu”.
Devidamente autorizada pelo filho de Torquato, Thiago de Araújo Nunes, hoje piloto de avião no interior de São Paulo, a canção inédita que surgiu de um bate-papo via internet é uma das muitas surpresas do documentário contemplado por um edital da RioFilme e feito com apoio do Canal Brasil, com previsão de estreia no início de 2015. O filme, bem como o relançamento do livro “A biografia de Torquato Neto”, do jornalista Toninho Vaz (leia mais abaixo), ajudam a iluminar muitas das faces ainda obscuras de um dos grandes nomes da arte brasileira. Além de uma obra poética extensa, Torquato foi parceiro de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Geraldo Azevedo, entre muitos; foi autor da coluna Geleia Geral, no diário “Última Hora”, onde bancava movimentos artísticos de vanguarda, como o cinema marginal, a poesia concreta e a Tropicália, da qual foi um dos artífices; idealizou a revista de contracultura “Navilouca”; fez filmes em Super-8, isso tudo antes do suicídio, aos 28 anos.
O obscurantismo de tamanha obra vem da própria complexidade de Torquato. Mas também da falta de material acessível sobre ele — sem qualquer livro publicado em vida, os volumes que reúnem seus textos, as edições de “Os últimos dias de paupéria” de 1973 e de 1982, e “Torquatália”, de 2005, estão esgotados.
— Existem muitas lacunas ainda sobre a passagem de Torquato por tantas cenas. Tivemos a sorte de conseguir alguns depoimentos importantes para esclarecer alguns dos seus períodos mais conturbados, como o de Cyro Monteiro, que nos ajudou a entender a temporada que Torquato passou em Londres e Paris, quando conviveu com o grupo Exploding Galaxy, quase entrevistou a Yoko Ono e até fumou haxixe com Jimi Hendrix — comenta Marcus Fernando, que teve a ideia do documentário durante a concepção da série do Canal Brasil “Cale-se: A censura musical”, sobre músicas censuradas durante a ditadura, que estreia no próximo semestre. — Havia muito pouco sobre Torquato. Não há imagens dele em vídeo além dos filmes em que atuou, não há registros de sua voz, e além disso, ele destruiu muito material que produziu. Fiquei instigado a tentar construir esse personagem, que não é só o poeta marginal de que se tem notícia ou o Nosferatu do filme de Ivan Cardoso, é muito mais complexo.
“PARIS É UMA FESTA CHATA"
Ao buscar o seu acervo em Teresina, no Piauí, onde nasceu o escritor, Marcus e Eduardo depararam-se com um Torquato organizado, que escrevia listas de textos por entregar e composições pendentes. Conheceram pessoas que trabalharam nos seus filmes experimentais, como a professora aposentada Claudete Dias, que interpretou Eva no filme perdido “Adão e Eva, do paraíso ao consumo”, de 1972. Tiveram acesso a muitos desenhos de Torquato, jamais publicados, além de fotos de infância e cartas inéditas do acervo de parentes.
— Eu esperava há muito tempo um trabalho que condensasse esse ídolo da minha juventude — confessa o cunhado de Torquato Neto, o antropólogo Hélio Silva, que cedeu para o filme cartas inéditas que trocou com o poeta durante sua temporada na Europa, como a que mistura picardia e poesia ao falar do medo de voltar ao Brasil: “Helinho, estou começando a ficar realmente preocupado com essas histórias de censura na correspondência da gente. É chato, major! Gostaria de voltar ao Brasil apenas depois que Caetano e Gil fossem liberados e pudessem me contar exatamente o que esses caras sabem e querem. (...) Paris é uma festa chata. Abraços, beijos, amor, carambolas, frutas tropicais, saudades, vinho, mulher, música, sete pecados capitais, dez mandamentos, censura, fogo, água, terra e guarabiras. Tudo pra você”. — O Torquato não realizou tudo o que prometia e, mesmo assim, produziu muito. Infelizmente muita coisa se perdeu, então era fundamental que esse material fosse amarrado para as futuras gerações. Ele tinha esse jeitão messiânico, era muito louco, mas era adorável.
Além de Ronaldo Bastos, que acabou provocando uma canção inédita para o filme, a dupla também já gravou depoimentos de artistas como Gilberto Gil, que foi às lágrimas ao revelar que ainda sonha com Torquato, e de Tom Zé, que lembrou que certa vez recebeu uma ligação de Torquato perguntando se podia “roubar” uma palavra sua. Era “domingou”, da canção “Dique do Tororó”. Tom Zé achou curioso: “Domingue tudo que você quiser, Torquato”.
BIOGRAFIA POLÊMICA É RELANÇADA
Relançada na semana passada, “A biografia de Torquato Neto” (Editora Nossa Cultura) tem uma história quase tão conturbada quanto a de seu personagem. De autoria do jornalista Toninho Vaz, que também escreveu a biografia hoje não autorizada de Paulo Leminski (“O bandido que sabia latim”), a obra foi publicada originalmente em 2003 com o título “Pra mim chega”. Primeiro trabalho a compilar cartas e depoimentos de Torquato, o livro chegou a ter o apoio da família no início, mas o acordo foi rompido antes da publicação.
— A família não gostou das informações que eu apurei, mas que eu não podia omitir, como sua bissexualidade ou esquizofrenia. Como o livro foi mal distribuído na época, é praticamente inédito, decidi relançar com algumas novidades, como um depoimento do Guarabyra, contando como conheceu Torquato — declara Vaz.
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