sábado, 11 de outubro de 2014

Obs: Na foto, Mestre Batista.Anos 70.

Carta aos Maracatuzeiros de Baque Solto de Pernambuco


Caros amigos, conhecidos e desconhecidos, que comigo fazem parte da tradição do Maracatu de Baque Solto de Pernambuco:
O dia 10 de outubro de 2014, bem poderia vir a se tornar um dia histórico, a ser comemorado por nós de agora em diante se assim entendermos a sua importância.
Neste dia foi assinado em Recife um documento no qual o Ministério Público de Pernambuco recomenda que as sambadas e ensaios de Baque Solto não sejam mais interrompidas pela polícia antes do amanhecer do dia.
De agora em diante, cada Maracatuzeiro pode programar e realizar seu ensaio e sambada sem o constrangimento de uma proibição arbitrária e ilegal, e caso ainda venha a sofrer algum tipo de restrição, pode denunciar o caso com a certeza de que ao menos no papel o direito estará com ele.
Mais do que isso, passamos a ser uma referência na luta contra a criminalizarão da cultura popular, ameaça que cresce e assombra nossa liberdade de ser da maneira como somos.
Mas é também um momento de refletir e se perguntar :
Como isso foi possível?
Não tenho as respostas, mas gostaria de reconstruir um pequeno histórico do preconceito e opressão ao Baque Solto.
No passado já distante, não existiam agremiações com o nome de Maracatu.Era o Leão do Engenho tal, a Estrela de Fulano, a Cambinda de tal cidade… Maracatu significava bagunça, confusão, “festa de nêgo”.De tanto ser usada de forma pejorativa, a palavra passou a dar o nome a um tipo de cortejo de carnaval que começava a se formar no Recife e no interior.Essa parte da história já diz muito do lugar que estaria reservado `a cultura do povo mais pobre ligado ao corte de cana de açúcar em Pernambuco.
De tempos antigos também vem o costume de se associar o Maracatu a “coisa do diabo”, noção preconceituosa decorrente da profunda ligação do Maracatu de Baque Solto com os cultos populares de origem afro-indígena.
Nas primeiras décadas do século passado, ao buscar um lugar no Carnaval de Recife, fomos considerados “Maracatus sem origem, degenerados, ilegítimos” e forçados pela Federação Carnavalesca a incorporar elementos que nos aproximassem do formato do Maracatu de Baque Virado, tradição distinta da nossa.
A criação da Associação dos Maracatus de Baque Solto em 1989 trouxe um enorme avanço na organização e articulação dos Maracatus, elevando a tradição de um lugar de indigência para um outro de extrema marginalidade, mas ainda assim bem melhor do que antes.
Nos anos 90, quando o país inteiro olhava para o Recife e sua música, fomos alçados `a categoria de ícone genérico da cultura pernambucana sem no entanto conseguir projetar nenhum nome individualmente a não ser o Mestre Salustiano.
É fato que a situação atual é bem melhor do que a 20 anos atrás, o que possibilitou inclusive a multiplicação do número de grupos.
Mesmo assim, seguimos ocupando sempre apressadamente os piores palcos no carnaval, demorando meses para receber o dinheiro, sempre solicitados para fazer cena mal remunerada nos mais diversos tipos de eventos de autoridades, a imagem do caboclo de lança usada e abusada em toda campanha política de todo e qualquer partido..
Mais recentemente, sem explicação nem justificativa, vimos se instaurar pouco a pouco em toda a região da zona da mata uma “nova ordem’, que impunha o limite nos horários para a realização de nossos ensaios e sambadas, tradição e costume secular e valor central na manutenção de nossa tradição.De boa fé acatamos a nova “lei”, sem saber que se tratava de uma arbitrariedade ilegal, sem nenhum fundamento a não ser o desprezo pela “coisa de nêgo, o Maracatu”.
Agora que teremos na mão um documento que acreditamos venha a garantir o respeito e mesmo a sobrevivência de nosso “brinquedo”, é necessário que possamos perguntar:
Como foi possível que a “brincadeira” do cortador de cana tenha sido criminalizada justamente durante o governo do neto do político com histórico mais diretamente ligado ao trabalhador da zona da mata?
Perguntemos também:Prefeitos, vereadores, pesquisadores,produtores culturais que atuam na zona da mata realizando eventos baseados na cultura local, jornalistas, "amantes da cultura popular" com acesso a um ou dois degraus acima na escadaria do poder, quem poderia ter intermediado ou no mínimo denunciado o problema, e não o fez?Seria bom lembrar sempre do papel que cada um destes teve nessa história.
Mas , principalmente, devemos nos perguntar : que lugar o Maracatu de Baque Solto quer ocupar no tempo presente?
Somos uma força de expressão cultural viva, inteligente, dinâmica e sofisticada, que mistura música, poesia, dança, teatro e artes plásticas de modo único e especial ou preferimos ser o costume folclórico inocente a serviço de interesses políticos que não nos respeitam?
A tradição que tem artistas do nível de Barachinha, João Paulo, Dedinha, Manoel Damião, Anderson Miguel, Zé Flor, Antônio Caju, Zé Joaquim, Canário Voador, Reginaldo Silva, Biu Caboclo e tantos outros precisa ser capaz de exigir um trato diferente por parte dos poderes instituídos.
Tive a sorte de conhecer e conviver um pouco com alguns Mestres que já se foram, e que em seu tempo constituíram lideranças ativas e deram contribuições fundamentais para que nossa tradição conquistasse espaços menos indigentes ao longo dos anos .Mestre Salustiano, João Lianda, Mestre Batista…Tenho certeza que nenhum dos três teria aceitando pura e simplesmente a situação a que fomos submetidos sem questionar e levantar voz de indignação.
Dedico a eles este texto, pela influência artística e humana formadora que tiveram em minha vida o seu poder de luta, que compõe o espírito mais profundo da tradição do Maracatu de Baque Solto de Pernambuco.
Também a meus parceiros de trincheira, Maciel Salu, Rute Pajeú, Liana Cirne Lins e Mestre Barachinha: Nenhum de nós teria conseguido esta pequena vitória sozinho.
Aos pouquíssimos ( dois ou três ) maracatuzeiros (?) que me sugeriram que a solução para a perseguição aos Maracatus seria transferir as sambadas para o domingo `a tarde,inventando quem sabe uma ridícula “matinê”, só tenho a dizer:
O Baque Solto Salva, também.
Siba Veloso
São Paulo, 10 de Outubro de 2014

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