sábado, 27 de dezembro de 2014



Cinco anos após sair do “Cordel do Fogo Encantado”, Lirinha acumula realizações em diversas áreas artísticas, mas no norte da bússola, ainda está a poesia. “O papel do artista é questionar o Rei, é mangar e dizer coisas que nem todo mundo pode dizer. A gente tem que estar ali, feito bobo da corte, rindo daquele rei assassino, que manga de você”
Por Igor Carvalho
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“No Cordel, a minha composição dialogava com os demais integrantes, eu não me sentia a vontade pra falar das minhas coisas, eu era o porta voz de outras pessoas e de seus sentimentos. Ficar sozinho me permitiu criar muitos personagens”
Quase cinco após deixar o “Cordel do Fogo Encantado”, José Paes de Lira, o Lirinha, segue encontrando sua inquietude, que não o deixa estagnar. “A paz eu encontro na música”, explica o cantor.
Herdeiro direto da “liberdade criativa” de Luiz Gonzaga, Lirinha tenta fugir de rótulos, que reforçam o capitalismo e sua prática de prateleiras, coisificando o artista. Em entrevista à Fórum, ele define seu momento como a “psicodelia da interlândia” e fala do encontro com o Hip Hop e a poesia periférica de São Paulo.
“Eu achava que eu conhecia tudo, que não me surpreenderia com nenhum movimento no Brasil ligado à poesia, mas nada se aproxima da grandeza de um sarau na periferia de São Paulo”, afirma.
O cantor, que declarou seu voto em Dilma Rousseff (PT) nas eleições presidenciais de 2014, deu sua versão para as ideias absurdas de separação do país entre sulistas e nortistas. “Neste momento, o objetivo óbvio era desarticular o caminho de crescimento justo do país. As pessoas que vi levantando essa questão, de divisão do Brasil, são as mesmas que quando você aprofunda o debate, descobre que têm raiva de gay, do MST, de bolivianos, de outros imigrantes, tem raiva do PT. A ideia do nordeste arcaico é uma grande invenção.”
Hoje com 38 anos, o mais famoso cidadão de Arcoverde, no sertão de Pernambuco, se prepara para lançar seu segundo disco solo, o “Lira – Volume 2”, no começo de 2015. Além disso, a capacidade de arte de Lirinha rendeu dois livros, uma peça de teatro e quatro discos, sendo três com o “Cordel do Fogo Encantado” e um outro separado da banda.
Confira a entrevista:
Fórum – Ser apresentado como multiartista é algo que lhe incomoda?
Lirinha – Não me incomoda a definição de “multiartista”, o que me deixa mais atento e cuidadoso é com a relação com essas artes. Minha relação com elas nunca pode ser uma relação superficial. Eu sei, hoje, que cada arte exige coisas diferentes da pessoa que se coloca como capaz de fazê-la. Eu mesmo, já questiono a palavra “artista”. Aprendi com Erickson Luna, um poeta lá de Recife, que não existem artistas, existem pessoas capazes de arte. Bom, quando cheguei em São Paulo, me envolvendo com o Teatro Oficina, ouvi Zé Celso afirmar que todos nós somos uma “potência artística e não necessariamente um artista”, isso me deu mais clareza nesse caminho da arte, mas é preciso um mergulho e um envolvimento, é preciso amar todas as artes. Literatura é uma ida ao subterrâneo, tem que entrar na caverna, não se escreve um livro nas horas vagas, se você não tiver um tempo para essa entrega, não será uma obra completa. O objetivo das artes também é diferente. Se o que te move são os aplausos, na literatura isso praticamente não acontece, e quando acontece demora demais. Então, teu impulso e estímulo devem ser outros.
Fórum – Com qual dessas artes você teve o primeiro contato?
Lirinha – Eu comecei com poesia. Aí, começa essa confusão das minhas multifaces como artista, a poesia é minha primeira escola e ela define minhas características para tudo que vem a seguir. Os poetas nordestinos, que são meus primeiros ídolos, entoam a palavra, a palavra é cantada e isso me influencia, provocando em mim um fascínio, me tornei um declamador ainda muito novo. Desse trabalho, viajando com os poetas, me apresentando em intervalos de cantorias de repentistas, comecei a me apaixonar pela música e também pelo teatro. Foi nesse encontro da poesia que eu trabalhava com o teatro, que desenvolvi meu primeiro trabalho conhecido, o “Cordel do Fogo Encantado”, que era o nome do espetáculo que criei em 1997, eram 40 minutos de música e poesia.
Fórum – Qual o papel que Arcoverde tem na construção da estética de sua música e de sua poesia?
Lirinha – Ela realmente definiu a estética que sigo, porque eu não só nasci em Arcoverde: eu nasci e fui criado em Arcoverde. Muitos de meus sonhos foram gerados em Arcoverde. Essa estética de que estou dizendo define a “psicodelia da interlândia”, que é como eu considero o som que estou fazendo agora. Essa palavra, “interlândia”, vem da expressão inglesa interland, que significa “lugar longe dos portos”. Eu vi essa palavra em um livro sobre a “guerra dos bárbaros”, que é o nome que se dá à entrada dos colonizadores no sertão, na região onde nasci. Sabemos que foi a entrada mais agressiva, mais violenta, porque não veio acompanhada da catequização, foi uma entrada de extermínio, etnocida. Então, esse lugar com características tão peculiares e fortes foi onde vivi até 22 anos de idade, quando, na verdade, era normal sair mais cedo, para estudar na capital – todos os meus amigos já tinham saído, eu só saí com o “Cordel do Fogo Encantado”. No mesmo ano em que saí, vim pra São Paulo, ainda não para morar, mas já passava a maior parte do ano aqui. Isso já é 1999, que foi quando o “Cordel” virou o nome da música, após o festival “Rec Beat”, em Recife, quando começamos a ter visibilidade.
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Fórum – Na época do “Cordel do Fogo Encantado”, havia uma corrida para tentar decifrar o que era a banda. O seu primeiro disco também gerou debates. Não é chato ter que responder a rótulos? Ter que ser significado, para ser mais palatável?
Lirinha – O que me incomoda é o sistema capitalista. Isso que você perguntou é uma das características do mundo capitalista, me rotular para que na prateleira seja mais palatável, que seja mais rápida a identificação do que será consumido com quem quer consumir. Eu participei de algumas premiações, e elas sempre se limitam a algum rótulo. O que questiono, também, é que alguns rótulos não têm uma coerência de análise e de crítica musical, servindo somente para identificar regiões. Por exemplo, o rótulo regional é muito utilizado para bandas do nordeste, isso é muito frágil. A música feita no Nordeste é muito ampla e complexa pra se classificar assim. Avaliando esse rótulo, fico em dúvida do porquê que uma música feita em outra região do país não recebe a definição de “regional”. Agora, esse rótulo é utilizado por alguns artistas, que gostam de vestir essa definição e defendê-la, falando em “nação nordestina”. Agora, eu percebo que a música feita no Nordeste é o contraditório desse discurso, porque não é fechada e hermética, é das mais abertas. Olhe Luiz Gonzaga, que foi uma pessoa que se deu uma liberdade muito grande para criar. Ele inventou uma música que não existiu. Hoje, de tão grande e forte que era a música de Luiz Gonzaga, nós consideramos a música dele ancestral. Percebo que existem dois caminhos de ser inspirado em Luiz Gonzaga: o primeiro é reproduzir a música que ele fez; o outro, reproduzir a liberdade criativa dele. Eu estou no segundo grupo. O que me interessa é aprender com os velhos como fazer o novo.
Fórum – Nos shows do Cordel, parecia haver uma multidão no palco, tamanha intensidade, barulho e energia que emanavam. Porém, você se separa da banda e ato contínuo, monta um monólogo. Era estranho te ver só, no palco. Como foi essa ruptura?
Lirinha – Ela foi proposital. Cordel foi uma experiência muito forte, como você falou, e eu busquei uma experiência em que concentrasse mais energia. Era importante reter energia, não permitir mais explosões, naquele momento. O espetáculo “Mercadorias e futuro” foi meu domínio de energias, eu também experimentei a solidão da atuação, que foi importante.
Fórum – E a solidão do processo criativo?
Lirinha – Pela primeira vez, me senti na possibilidade de falar da minha vida, falar dos meus sonhos, dos meus medos e alegria. No Cordel, a minha composição dialogava com os demais integrantes, eu não me sentia a vontade pra falar das minhas coisas, eu era o porta voz de outras pessoas e de seus sentimentos. Ficar sozinho me permitiu criar muitos personagens e usar um elemento estético de que gosto muito, que é a poesia sobre o futuro, que chamam de “poesia apocalíptica”, a “poesia profética”, um tema que aprofundo bastante no “Mercadorias e Futuro”, porque deixaram os profetas numa situação muito delicada, a responsabilidade de ter que acertar, isso foi uma sacanagem. A poesia do futuro, do novo sertão, do sertão 2014.
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“Aprendi com Erickson Luna, um poeta lá de Recife, que não existem artistas, existem pessoas capazes de arte”
Fórum – Como você se posiciona politicamente?
Lirinha – Eu venho de uma família de esquerda. Minha avó paterna, uma das fundadoras da Ação Cristã Rural, foi perseguida durante a ditadura militar e esse enfrentamento fez com quem minha família sempre se posicionasse. Eu também, sempre me posicionei, mesmo em momentos muito difíceis, como essa última eleição, a mais agressiva desde a redemocratização do país. Essa foi a eleição que ganhou esse componente, que é uma novidade na sociedade democrática, a internet. Então, pela primeira vez, vimos uma eleição com essa internet estruturada, o que permitiu essa agressividade. Bom, eu me posicionei, postei o apoio à Dilma e sofri todas as respostas possíveis sobre isso, mas com muita clareza compreendi que haviam projetos diferentes, entre ela e Aécio. Mesmo carregado de críticas à Dilma, principalmente na área cultural, eu manifestei o apoio. Depois de Dilma eleita, eu volto para posição que acho que todas as pessoas capazes de arte devem estar, que é uma posição pra longe do respeito a essas lideranças, porque a nossa função é questionar. Eu acredito que a arte é diversão, prazer, conhecimento e denúncia. O papel do artista é questionar o Rei, é mangar e dizer coisas que nem todo mundo pode dizer. A gente tem que estar ali, feito bobo da corte, rindo daquele rei assassino, que manga de você.
Fórum – Você, uma das referências culturais do Nordeste, viu de que forma o discurso separatista, defendido no Sul e Sudeste?
Lirinha – Como uma grande bobagem. Eu até fiquei incomodado e quis falar algo sobre isso, depois percebi que era algo inconsistente e requentado, porque essa ideia sempre volta em determinados contextos. Neste momento, o objetivo óbvio era desarticular o caminho de crescimento justo do país. As pessoas que vi levantando essa questão, de divisão do Brasil, são as mesmas que quando você aprofunda o debate, descobre que têm raiva de gay, do MST, de bolivianos, de outros imigrantes, têm raiva do PT, tem raiva dos movimentos sociais, tem raiva do movimento negro, enfim, isso me acalmou, perceber que a divisão do nordeste estava nesse pacote. A ideia do nordeste arcaico é uma grande invenção.
Fórum – Você acabou de dizer que arte tem que ser “diversão, prazer, conhecimento e denúncia”. O Hip Hop pode perfeitamente estar contemplado aí. Você vem morar em São Paulo no ano de 2001 já conhecendo o movimento? Que tipo de análise construiu a partir da sua aproximação com o rap, que por vezes se encontra com o cordel?
Lirinha – A minha identificação com o Hip Hop é imediata e muito grande. Quando cheguei em São Paulo, as primeiras pessoas que conheci do movimento me deixavam muito emocionado. As coisas não morrem, elas se transformam. Essa poesia, cuja origem dizem ter sido na poesia trovadoresca medieval, que chegou aqui no Brasil em forma de quadras, através Espanha e Portugal, na colonização, essa poesia, que na região do nordeste se desenvolveu e gerou mais de cem gêneros, se transforma e se torna no rap das periferias. Acho que essa poesia, aliada à estética do Hip Hop americano, formam o rap brasileiro. Eu vendo Emicida, por exemplo, improvisando, é algo muito próximo à lógica, filosofia, rapidez e ironia do violeiro e repentista nordestino.
Fórum – Você tem frequentado os saraus periféricos de São Paulo. O que tem visto nestes espaços que o faz retornar?
Lirinha – Fui levado por Marcelino Freire para a Cooperifa, na primeira vez, e conheci Sérgio Vaz. Marcelino disse que mudaria minha vida conhecer esse lugar. Era verdade, o impacto foi muito forte. Embora tenha crescido em um ambiente de poesia, a universidade que mais frequentei foi a dos bares, da noite e da madrugada, a gente virava a noite dizendo poesia, sempre tive uma relação com a poesia falada, que estabelece uma relação com o outro. Eu achava que conhecia tudo, que não me surpreenderia com nenhuma movimento no Brasil ligado à poesia, mas nada se aproxima da grandeza de um sarau na periferia de São Paulo. A poesia nesses espaços destrói a régua que mede tamanho de poesia. É a história que não foi escrita, sendo contada. Toda vez que vou num desses saraus, aprendo muita coisa e isso tem interferido na minha poesia e na minha música. Depois da Cooperifa fui em alguns, aí descobri o Círculo Palmarino, em Embu das Artes, onde já fui duas vezes, e a sensação é a mesma. Através da metáfora poética, conversamos sobre nossas dores, sonhos, fazemos nossas denúncias e construímos a nossa esperança.

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