quarta-feira, 2 de novembro de 2016






                  ROMARIA DO JUAZEIRO


Por: Nathan Xavier
Fotos: Adriana Costa

A vida do padre Cícero Romão Batista foi intensa e cheia de reviravoltas, mas se os documentos e cartas estudados hoje, com certa distância no tempo, podem ajudar a reconstituir os verdadeiros fatos, algo muito mais forte atesta sem dúvida a importância de padre Cícero: a fé dos romeiros e os frutos das romarias. Uma fé impressionante e perseverante, que esperou mais de 80 anos, para, enfim, ver seu padrinho reconciliado com sua Igreja. “Se não existisse essa teimosia que veio de baixo para cima, padre Cícero seria apenas uma folha de papel nos livros de História do Ceará”, afirma irmã Annette Dumoulin, que há 40 anos desenvolve um trabalho junto aos romeiros. “É fundamental perceber essa realidade que fez com que a Igreja não tivesse condições de esquecer.”
A partir das diversas solicitações que, por anos, chegavam ao Vaticano pedindo uma reavaliação do caso, o cardeal Joseph Ratzinger (futuro papa Bento XVI), na época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu ao então bispo do Crato uma carta perguntando da possibilidade de abrir os documentos da Cúria diocesana para um estudo e esclarecimento dos fatos acontecidos. Como o bispo já estava de saída da diocese, a tarefa recaiu sobre dom Fernando Panico, que assumiu em 2001. A posse do novo bispado foi motivo de alegria para os habitantes de Juazeiro, pois uma antiga história falava que padre Cícero só seria reconhecido quando um bispo estrangeiro assumisse a Diocese do Crato. Mero acaso ou não, dom Fernando, italiano, é o quinto bispo da diocese e o primeiro não brasileiro. Foram quatro anos de pesquisas em arquivos, documentos históricos e cartas em diversas cidades do Brasil: “Recolhemos tudo em nove volumes e, no dia 30 de maio de 2006, acompanhado por uma turma de romeiros, fui a Roma para entregar a documentação”, afirma contente dom Fernando. “Foram anos de muita expectativa e de tensão, mas Deus tem seus momentos e sabe o que faz e quer o que faz.”

O Romeiro ─ Do meio da multidão se vê, após uma breve oração, o pai, alto, de roupas simples, chinelos de dedo nos pés e com o corpo e pele castigados por muito trabalho braçal sob o sol, repousa o terço de plástico no túmulo de padre Cícero aguardando alguns segundos, diante do olhar ansioso e sorridente de seu filho. Retira o terço e o entrega ao garoto, que não conseguia conter a felicidade ao segurar o objeto, como quem segura uma esmeralda, um terço de plástico verde. Diante da ansiedade, encontra dificuldade em passá-lo pela cabeça, mas o pai pacientemente o ajuda. Os dois saem da Capela de Nossa Senhora do Socorro, em Juazeiro do Norte (CE). O pai pouco à frente do menino, que não tirava os olhos de seu precioso terço, abençoado pelo padim Ciço. Até se perderem de vista no meio da multidão de fiéis.

“Desde criança tenho essa devoção. Eu tinha 14 anos e vinha com meu pai, que era romeiro de padre Cícero”, revela Ana Maria Cavalcante, 64 anos, que veio com o marido, Ivo Antônio Cavalcante 61 anos. Ana Maria mostra que sua devoção passa longe de fanatismo: “Primeiramente Jesus Cristo e depois meu padrinho, que é um padrinho muito forte”, contando as graças já recebidas por intercessão de padre Cícero. Pergunto a vários romeiros de onde veio a devoção por padre Cícero, já que por anos a Igreja não deu qualquer apoio, e a resposta é quase sempre a mesma: “É tradição da família. Eu vinha com meus pais, e incentivo hoje meus filhos também”, conta Francisco de Assis da Costa, 62 anos, que levou 12 horas e meia de ônibus desde Boca da Mata, (AL). “Eu vinha quando menino com meus pais. Fretava o pau de arara e vinha”, relembra com carinho Antonio Cristóvão da Silva, 48 anos, de fala serena e jeito simples, que trabalha na roça e é dono de sua própria terra, na cidade de Viçosa (AL). “Terra que Nosso Senhor Jesus Cristo me deu e vivo nela, plantando, trabalhando e colhendo o que Deus me dá.” Ele afirma que participa ativamente na paróquia dele, rezando o terço e levando a Palavra de Deus aos outros e que fica ansioso para a romaria em Juazeiro. “A fé é importante pra mim, uma Graça! A gente fica o ano todo trabalhando, esperando que chegue logo o dia da viagem. E a gente traz o padim Ciço como um pai respeitado por nós.” E completa com aquele jeito de gente que conta sempre com a ajuda do céu: “Estou bem contente que choveu na minha roça. Meu menino ligou e avisou. Eu tinha plantado lá e deixei por causa da romaria, na volta eu resolvo, porque Jesus disse que bem material não é tudo. O que é tudo é nosso Pai Eterno. Deixei tudo pra eu vir na festa de Nossa Senhora das Candeias”. 

Um padre do povo 
– “A figura, a pessoa, o trabalho pastoral e missionário de padre Cícero tem influência sobre todo o Nordeste”, explica padre Cícero José da Silva, pároco da Basílica Nossa Senhora das Dores, responsável por acolher os fiéis que acorrem a Juazeiro todo ano. “A Igreja pode não reconhecer em sua estrutura hierárquica, mas ele é santo no coração do povo.” E qual o segredo de padre Cícero Romão? “Ele fazia essa ligação entre fé e vida, não ficava só na vida espiritual, descia da montanha e com o povo desenvolvia sua ação pastoral”. E continua: “Se nós, hoje, padres ordenados pós-Concílio Vaticano II, com essa missão de sair ao encontro do povo, imaginarmos, que há mais de 100 anos, um padre já tinha essa habilidade pastoral, que acolhia, que apontava, fazendo uma real opção preferencial pelos pobres, então, ele incomoda”.
Se na época de padre Cícero Romão a Igreja local havia proibido qualquer padre de batizar uma criança com nome de “Cícero”, já há alguns anos a regra caiu por terra. Não é a toa que, assim como o pároco Cícero José, existem mais oito padres com nome de “Cícero” apenas na Diocese do Crato (CE): “Todas as famílias tem que ter um Cícero ou uma Cícera, em reconhecimento ao padim”, afirma padre Cícero, o José.
Padrinho – 
A a força de padre Cícero para a cidade de Juazeiro e todo o Nordeste vai além do ministério sacerdotal. Ele é um padrinho, e padrinho  aconselha, instrui e acompanha na pratica da fé, protege e intercede por seus afilhados, não por acaso, um significado muito próximo do que é ser santo. Aliás, entre o povo do Nordeste, não há ninguém que não afirme convicto: “Padre Cícero é santo!”. O processo, que iniciou em 2001, resultou na histórica reconciliação, através da carta escrita pelo secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin a pedido de Papa Francisco, e enviada à Diocese do Crato em dezembro de 2015, passado sendo lida por dom Fernando durante uma missa, na frente de milhares de emocionados fiéis. E o destaque da carta foi justamente os frutos das romarias iniciadas por padre Cícero e as devoções ao Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora das Dores: “Devoções que ele transmitiu e que o povo por sua vez passa de geração em geração. E aí está o valor da Tradição, com T maiúscula, de uma fé verdadeira, que não nasce do acaso, mas tem raízes, e é a família que propaga e difunde essas raízes no coração dos filhos”, afirma dom Fernando.
Rosalva da Conceição Lima, uma ativa senhora que não aparenta ter 95 anos, embora tenha, conheceu pessoalmente padre Cícero e lembra de muita coisa. “Aqui é terra de trabalho e de oração, era o que ele falava.” Morando numa pequena e organizada casinha na Rua do Horto, uma grande ladeira que leva até a famosa estátua de padre Cícero. Ela relembra que o sacerdote tinha o respeito de toda a região, mesmo com seus ensinamentos rígidos. “Meu pai pediu a ele que o ajudasse a vir para Juazeiro, e padre Cícero disse a ele que trabalhasse em sua terra. Ele não disse a meu pai para vir viver de esmola, não”, relembra. E é taxativa sobre a condição do mundo hoje, usando os próprios ensinamentos do padrinho: “Precisam aprender a trabalhar e rezar. Se rezassem e trabalhassem, fossem contritos, o mundo era outro. Tanto os rapazes como as meninas”. E compara com sua época: “O tempo tá muito bom hoje. Tem escola e a moçada não quer, joga tudo no mato. Hoje tá todo mundo rico, não tem pobre não”, narrando a infância com muitas dificuldades. Dificuldades, aliás, que padre Cícero conhecia muito bem: “Pra mim ele é santo”, atesta dona Rosinha. “Nasceu santo, viveu santo e morreu santo. Ele sofreu essa dor todo o tempo e sofreu junto de nós nesta terra. E, apesar disso, nunca quis que falasse mal de nenhum padre ou bispo.” E termina com uma frase do próprio padre Cícero, resumindo o que, como ela, muitos levaram para a vida inteira: “Você reze como quem vai morrer hoje e trabalhe como nunca há de morrer, porque quem trabalha tem para si e para dar a quem precisar”.

Romarias – A Romaria de Nossa Senhora das Candeias está associada, no calendário litúrgico, ao dia da Apresentação do Senhor, e foi criada por padre Cícero. Hoje, a romaria começa numa missa campal em frente à Capela de Nossa Senhora do Socorro, onde padre Cícero está enterrado, e segue até a Basílica de Nossa Senhora das Dores, em cujo local se dá a adoração e bênção do Santíssimo Sacramento, finalizando com fogos de artifício, num bonito espetáculo onde a luz tem papel de destaque, simbolizando Cristo, luz do mundo, apresentado no Templo, por Nossa Senhora.
Dom Fernando afirma que o próprio papa Francisco lhe disse que vê nas romarias, iniciadas por padre Cícero Romão, o caminho para a Nova Evangelização e instrumento para uma igreja em saída: “É uma fé enraizada na vida, nos pobres, nas pessoas simples, que se deixam plasmar, transformar e iluminar pelos valores da Palavra de Deus”, explica. Além dessa romaria das Candeias, os fiéis costumam participar das outras quatro que acontecem ao longo do ano em Juazeiro. Segundo o bispo do Crato, são 2 milhões e meio de romeiros todos os anos na cidade. Francisco de Assis da Costa, 62 anos, participa de todas elas, enfrentando 12 horas e meia de viagem de ônibus desde Boca da Mata, em Alagoas: “Eu gosto demais da romaria, pra mim é uma maravilha. É tradição da família. Eu vinha com meus pais e incentivo hoje meus filhos também”. 
Benildes Alves Oliveira participa das romarias há 37 anos: “A primeira vez que vim só tinha estrada de terra e levei três dias. Agora está ótimo, a gente sai e chega no mesmo dia”, fazendo pouco caso dos 570 quilômetros desde o município de Nossa Senhora da Glória (SE). Quando ele percebe minha cara de surpresa, conta que seu bisavô fazia o mesmo percurso a pé: “Essa devoção veio do meu bisavô, chamado Craveiro. Eu não sabia, vim por curiosidade em 1978, e, quando vim, minha mãe me contou. Ele ia com um jumentinho que trazia as tralhas, as roupas, e ele a pé”. Pergunto o motivo de tanto esforço e me responde de forma enigmática: “Venho porque é um mistério. Qual eu não sei, mas você vem, peregrina, sofre e acha bom”. E emenda: “Uma vez estava com problema de próstata e precisei usar sonda. As pessoas diziam pra eu não vir (pra romaria), e eu vim com aquela bolsa (bolsa coletora)grande em mim. Quando cheguei, as pessoas ficavam impressionadas e pediam que eu deixasse tocar em mim, e eu dizia pra não só tocar, mas abraçar também, e a gente se abraçava! E isso foi minha cura também, porque as pessoas oravam por mim. Quando cheguei em casa o médico disse que eu não precisava mais operar, só tomar uns remédios. Faz dois anos e estou ótimo”.
Graças alcançadas por intercessão de padre Cícero e as romarias, como a do senhor Benildes, são abundantes entre os romeiros. Telma Alves dos Santos pediu por seu neto, hoje com 13 anos, que não andava. “Agora já tem 11 anos que ele caminha direitinho”, diz afirmando que se sente muito feliz em ir a Juazeiro. “A minha mãe me trouxe pra cá, e eu gostei, tinha uns 18 anos. Meu filho, que desde pequeno me acompanha, e agora meu neto. mostrando que os ensinamentos do padre Cícero, mesmo sem o incentivo da Igreja, foram passados adiante: “Deus é nosso Pai criador, sem ele não somos nada. Quando a gente pede pra vir aqui é como um alívio no Céu”. 
A romeira Margarida Paixão dos Santos, 65 anos, afirma que teve um problema na cabeça, com dores fortes que não passavam. Foi médicos de variadas especialidades, mas os remédios receitados não surtiam nenhum efeito: “A agonia era muito grande na minha cabeça, e eu não dormia direito, foi quando eu pedi a padre Cícero e à Mãe das Dores que intercedessem a Jesus para me curar, porque eu não aguentava mais”. Ela conta que no momento da oração, sentiu como se padre Cícero tivesse tocando nela, e ela adormeceu. Quando acordou, no dia seguinte, tossiu muito e colocou o muco que restringia as vias aéreas para fora. Na mesma hora, a dor de cabeça passou: “Voltei para o meu médico, o doutor Marco Melo, e disse que estava curada. Ele perguntou quem tinha me curado, e eu disse que tinha sido meu padrinho Cícero e a Mãe das Dores. Ele pediu novos exames para confirmar minha certeza. Depois dos exames, ele disse: ‘Continue com sua fé que você não tem mais nada’”. Como afirmou dom Fernando e o padre Cícero José todas as pessoas com quem conversei vão à missa e rezam o terço, muitas, diariamente, “como meu padim sempre pediu”, ensinou uma romeira. Também possuem um pequeno altar em casa com imagens de santos, entre eles, o de Maria, o Sagrado Coração de Jesus e, claro, padre Cícero Romão.
“O Papa Francisco disse que não há santo sem passado e nenhum pecador sem futuro”, afirma padre Cícero José. “O que é de Deus permanece, o que não é, desaparece. A história, missão e ação pastoral de padre Cícero, sem sombra de dúvida, é coisa de Deus. E a prova está aí: passados 82 anos de sua morte, o povo ainda acorre a ele, pedindo sua intercessão.”

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