Cavalo-marinho Estrela de Ouro de Condado mantém a brincadeira há quatro gerações.
Conversamos com Mestre Biu Alexandre, líder do grupo que é um dos mais recentes Patrimônios Vivos de Pernambuco titulados pelo Governo do Estado
Jorge Farias
Ao lado do frevo e do maracatu, o cavalo-marinho é uma das expressões populares mais importantes do Nordeste brasileiro, tendo bastante representatividade em Pernambuco, mais especificamente na Zona da Mata Norte. Alguns estudiosos arriscam dizer que é a mais completa, por se configurar num espetáculo que junta música, dança, poesia e teatro popular. De todos os grupos existentes hoje no estado, podemos dizer que o Estrela de Ouro de Condado, fundado em 1979, é um dos mais importantes. É lá que está o mestre Severino Alexandre da Silva, ou apenas Biu Alexandre, 75 anos de idade, desde os 12 um brincante nato dessa manifestação. Já são quatro gerações, a partir do Mestre Biu, dentro do Estrela de Ouro, grupo que hoje éPatrimônio Vivo de Pernambuco.
A tradição tem origem ainda na infância de Severino, quando já sabia de cor as toadas e funções dos mais de 70 personagens da brincadeira. “Eu não aprendi com ninguém e, ao mesmo tempo, com todo mundo. Ninguém me ensinou, mas aprendi vendo os outros, fui entoando, gravando na cabeça, só de olhar, pois meu pai Pedro de Quina foi um grande mestre e eu acompanhava ele por todo canto, e aprendi assim”, conta seu Severino, que largou a escola antes de aprender a escrever o próprio nome. Preferiu ir trabalhar e ganhar dinheiro com o pai, cortador de cana-de-açúcar. Cavalo-marinho, assim como maracatu rural, é uma brincadeira praticamente exclusiva dos trabalhadores rurais da Mata Norte pernambucana, que surgiu e se desenvolveu nos intervalos e na entressafra do trabalho com a cana.
Não foi diferente na família de Severino, que cresceu cortando, limpando, cambitando, cavando sulco para plantação da cana, pastorando boi e fazendo tudo quanto era serviço de um engenho. Como diversão, nos finais de semana, ia pelos terreiros da vizinhança entoando e dançando o cavalo-marinho, com outros homens e meninos cortadores de cana. Depois de seu pai, Severino aprendeu mais um pouco de cavalo-marinho com Preá e, depois, com Duda Bilau. “Foi ele que me disse que eu já sabia tudo e me botou para ser mestre”, conta.
Foi depois de muito tempo após sua existência, que o cavalo-marinho passou a ser registrado como uma brincadeira do ciclo natalino. A relação, feita por estudiosos dessa manifestação, vem do fato de, numa das partes da brincadeira do cavalo-marinho, acontecer uma louvação a Jesus Cristo, com a presença dos 3 Reis Magos do Oriente. Mas na infância do mestre Biu Alexandre, não tinha isso do cavalo-marinho ser uma festa típica do Natal. Era sábado o dia da brincadeira. No Engenho Paraguaçu, Guarany ou Teixeirinha, todos em Itambé. Noite de Natal era na Usina Aliança, em Aliança. Cavalo-marinho também não tinha nome naquela época. “Depois que vim pra cá para Condado fiz esse cavalo-marinho e botei Estrela de Ouro, achava bonito”. Mestre Biu diz que hoje, ainda que se esforce para manter a brincadeira do jeito que aprendeu com o pai, reconhece que muita coisa se modificou.
“Às vezes o pessoal canta uns negócio que não é de cavalo-marinho e a gente respeita. Mas antes, se a pessoa fizesse errado e o mestre fosse reclamar, o cabra baixava a cabeça. Hoje o galante quer dar no mestre. Tem nego que fica com raiva. Eu digo, isso tá errado. Tudo que eu digo no cavalo-marinho veio do meu pai, eu tenho que respeitar, e eles também. O que mais teve mudança foi a forma de botar as figuras. Tem personagem que é moço, e tem os que são velhos. Não pode querer fazer um velho se balançando todo, andando ligeiro, com fogo. Velho é cansado, é mais devagar”, ensina o mestre sobre a interpretação dos personagens.
Como todo mestre que se preze, Biu Alexandre circula pelas escolas de Condado e por onde mais lhe chamarem para dar aulas sobre o cavalo-marinho. Ele conta que muito ensinamento já foi retirado da brincadeira, a partir das pesquisas que foram feitas ao longo dos anos. “Chegam para gravar, levar letra, já veio tanta gente que nem lembro mais. Esse pessoal hoje tem mais saber do que a gente aqui, porque pegam da gente”,conta. O que ele quer mais hoje é continuar a repassar seus saberes para os jovens da comunidade mesmo. “Aqui na nossa cidade tem muita criança, queremos trazer eles, livrar das ruas, repassar o que a gente tem”, diz.
É por tentar manter a tradição, que o Estrela de Ouro traz singularidades em relação a outros grupos do estado, tendo bastante influência na formação de brincantes e artistas da cultura popular. Uma das particularidades do Estrela de Ouro é que a figura do Ambrósio é a primeira a entrar na brincadeira, antes mesmo do Mateus e Bastião. Outra figura importante que é apresentada neste grupo é o “Caboclo de Orubá”, que representa a relação com a Jurema, manifestação religiosa de origem indígena bastante presente na região da Zona da Mata Norte pernambucana.
NOVOS TEMPOS – Cláudio Rabeca é o rabequeiro do Estrela de Ouro há 14 anos. Entrou quando o então rabequeiro do grupo, o mestre Antônio Teles, saiu do Estrela de Ouro e foi montar seu próprio grupo, o Estrela Brilhante (depois Antônio Teles faleceu e sua filha, Nice, é quem hoje comanda a hoje o Estrela Brilhante, com mais outro maracatu mirim). “Eu só sabia tocar forró com a rabeca e umas duas toadas apenas de cavalo-marinho, mas eu era muito bom de ouvido. Pedia ao toadeiro que saísse na frente, que eu ia atrás para pegar. E assim fui aprendendo”, conta Cláudio Rabeca. Hoje ele mesmo é um professor e já deu algumas oficinas de cavalo-marinho, junto com outros integrantes do grupo.
Em acordo com Biu Alexandre, Cláudio também percebe as mudanças que aos poucos vão atingindo a brincadeira. Para começar, diz, “cavalo-marinho não era uma brincadeira paga e acontecia para a diversão dos próprios folgazões. Isso ainda hoje define a forma como os músicos e os figurantes se portam durante a manifestação. Eles brincam como se fosse para eles mesmos.” Para o músico, foi basicamente a entrada do dinheiro que mudou tudo. “Depois que começaram a tocar por cachês, os grupos mudaram sua agenda de apresentações, que geralmente acontecem em festas de municípios (sobretudo padroeiras) ou no período de Natal”.
“Quando eu entrei ainda vi o grupo se juntar para tocar na rua, na frente de para algum comercio local, uma venda. O cara pagava R$ 100 e o cavalo-marinho tocava e o lugar enchia de gente e o dono da barraca ganhava com a venda de bebidas. Hoje o cavalo-marinho está preso a uma apresentação paga, raramente a gente se encontra para festas próprias, só quando alguma prefeitura ou o estado contrata”, conta o rabequeiro.
O cavalo-marinho Estrela de Ouro é o único cavalo-marinho a ter gravado um DVD. Fato que, segundo Cláudio Rabeca, passou a influenciar outros grupos. Virou uma referência. Sobretudo porque grupos mais novos tendem a “espetacularizar” ainda mais o cavalo-marinho. Ou seja, transformar a brincadeira – que na sua essência é feita para quem está brincando nela – numa apresentação para o público. “A gente se apresenta e toca sempre do mesmo jeito, mantendo a tradição, mas temos algumas coisas que são vanguarda, como Martelo, que é o nosso Mateus. Talvez por ter feito parte do espetáculo Grial, de ter circulado por outros ambientes, ele pegou um pouco disso e está sempre inventando no figurino, fazendo uma diferença”, conta Cláudio. “Hoje tem cavalo-marinho que, a pedido do contratante, faz cortejo, sai desfilando pelas ruas, quando uma apresentação tradicional sempre foi parada num mesmo lugar. É a mudança dos tempos”, relata.
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