Ameaçada de extinção, seita religiosa do Interior do Ceará luta para manter viva uma tradição de mais de um século
Barbalha. As chuvas de março transformam a região do Cariri cearense, no extremo sul do Estado e já nas divisas com Pernambuco e Piauí, num verdadeiro oásis de fertilidade. Caminho pela zona rural da cidade de Barbalha a procura de um negro de voz calma que atende pelo nome de Joaquim Mulato e carrega sobre seus ombros de quase 90 anos a responsabilidade de representar uma das mais antigas e intrigantes seitas religiosas do interior nordestino. Mulato é o Decurião da Ordem dos Penitentes do Sítio Cabeceiras, um grupo de agricultores único no Brasil que, infelizmente, parece estar com os dias contados. Chegar ali — um bucólico recanto cercado por canaviais escondidos no sopé da Floresta do Araripe — é razoavelmente fácil. Desvendar os mistérios que se escondem por trás da secular tradição religiosa, por sua vez, exige algo mais que a simples curiosidade. Sou recebido por Joaquim Mulato e seu Severino — os dois membros mais antigos da Ordem — na sala simples da pequena casa de barro e madeira. Toda a mobília está resumida a uma pequena mesinha onde reina absoluto o oratório repleto de santos católicos. Na parede, Expedito, São João e outros santos oficiais dividem o espaço com os ícones da religiosidade popular nordestina. Frei Damião e Padre Cícero merecem lugar de destaque. No canto esquerdo, erguido no alto e sustentado por um prego, descansa o símbolo maior da tradição messiânica, uma cruz de madeira, talhada artesanalmente há mais de um século e que resguarda a essência da manifestação religiosa. “Esse Cruzeiro é o sofrimento de Jesus, a luta dele pra salvar a humanidade”, diz Mulato. Na peça, chama a atenção a riqueza de detalhes. Partindo de uma lua azul, 16 espadas prateadas com um coração em cada ponta dão a idéia de um sol. No centro, o Sagrado Coração de Jesus se destaca em vermelho. Escrito à mão, em cada um dos braços da cruz lê-se “viva jezus para cempre”.
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A louvação à eternidade, no caso, bem que poderia estar diretamente ligada ao grupo. Liderada essencialmente por gente acima dos 70 anos, a Ordem pode estar vivendo os últimos capítulos de uma história iniciada na segunda metade do século XIX e que tem o mérito de ter atravessado o tempo sem perder as características originais. Com apenas 15 discípulos, Joaquim Mulato não vê muita perspectiva quanto ao futuro da tradição. “Os jovens não querem saber de penitência. Preferem as festas”, reclama o velho soldado, demonstrando o cansaço típico do final da batalha.
A louvação à eternidade, no caso, bem que poderia estar diretamente ligada ao grupo. Liderada essencialmente por gente acima dos 70 anos, a Ordem pode estar vivendo os últimos capítulos de uma história iniciada na segunda metade do século XIX e que tem o mérito de ter atravessado o tempo sem perder as características originais. Com apenas 15 discípulos, Joaquim Mulato não vê muita perspectiva quanto ao futuro da tradição. “Os jovens não querem saber de penitência. Preferem as festas”, reclama o velho soldado, demonstrando o cansaço típico do final da batalha.
Para Severino, o segundo na ordem hierárquica, até mesmo entre os que já abraçaram a missão é possível identificar os sinais da mudança. “Têm deles que a gente marca uma reunião para as seis horas e eles acham ruim, pois só querem vir depois da novela das sete”, critica.
Criada pelo Padre Ibiapina, um ex-advogado, ex-deputado federal e ex-delegado de Polícia, a Ordem possui alguns rituais que a diferencia das demais seitas populares do interior nordestino. O principal deles é o autoflagelo, ou simplesmente “disciplina”. Pode ser feito de diversas maneiras, desde longas caminhadas pedindo esmolas, até a martirização do corpo com instrumentos próprios para esse fim.
Joaquim me mostra um “cacho”, instrumento de suplício formado por lâminas de ferro e diz que o objeto pertenceu ao fundador da seita. A autoflagelação deve ser realizada junto aos cruzeiros, nas portas das igrejas ou nos cemitérios, sempre de madrugada e longe da visibilidade. Em função da idade, Joaquim não se açoita mais. Para os estudiosos do tema, é exatamente nisto que se nota com mais clareza as mudanças trazidas pelo tempo. Alguns grupos de penitentes do Nordeste já abriram mão dos rituais de autoflagelo há muito tempo, concentrando suas atividades nas caminhadas, nas esmolas e nas preces. Deixar o sacrifício em segundo plano ou substituí-lo por outras práticas, a propósito, preocupa quem luta para preservar a originalidade da tradição. “Penitente sem disciplina, não é penitente”, enfatiza Severino, que também foi obrigado a deixar o flagelo de lado por já ter passado dos 80 anos de idade. Com roupas escuras que destacam listras e cruzes brancas, os integrantes da Ordem usam capuzes semelhantes às burcas usadas no Oriente Médio, com uma abertura em formato de tela para enxergar. A única cor em toda indumentária é o vermelho do Sagrado Coração de Jesus, o mesmo ostentado no Cruzeiro que é carregado na frente do grupo durante as raras aparições em público. Para Severino, a religiosidade o acompanha desde cedo.
VOTOS DE CASTIDADE
Eu já tinha oito anos, meu pai era penitente e eu não sabia. Ninguém sabia, só minha mãe”, diz o agricultor numa referência ao clima de mistério que caracterizava originalmente as atividades do grupo. “Penitente não podia ser visto não. Só caminhava de noite, sem ninguém ver e só andava pelos sítios, nunca nas cidades”, lembra Joaquim. Nem Mulato — que até hoje mantém o voto de castidade — nem Severino, possuem filhos dentro da Ordem.
O anonimato, característica marcante durante as primeiras décadas da tradição, também parece escoar pelas veredas do tempo. Hoje, durante algumas “apresentações”, os penitentes se juntam a dezenas de outros grupos culturais, em plena luz do dia, fazendo a festa dos fotógrafos e cineastas que visitam a região para documentar as tradições que fazem desse pedaço do interior nordestino um relicário das mais autênticas manifestações do povo sertanejo. Na Festa de Santo Antônio, por exemplo, a maior da cidade, reisados e bandas cabaçais dividem espaço com lapinhas, pastoris, karetas e vaqueiros vestidos a caráter. Um espetáculo multicolorido que atrai a atenção de pesquisadores e que há alguns anos despertou, ainda que tardio, o reconhecimento dos órgãos governamentais. A escolha dos chamados “Mestres da Cultura Popular” é feita anualmente e busca valorizar os que lutam pela tradição nas diversas áreas, como a xilogravura, o artesanato, o folclore e a religiosidade. Joaquim é um desses Mestres.
Seguindo as orientações dos mais antigos, os Penitentes de Barbalha seguem a caminhada espiritual cruzando as estradas empoeiradas da Chapada do Araripe, cantando benditos (já gravaram até um CD) e levando sua doutrina para os moradores da verde região sul do Ceará. Em alguns momentos os homens recebem a companhia das mulheres, que cantam suas “incelências” e embelezam ainda mais o singelo ritual de fé.
Eles já receberam a visita do bispo diocesano do Crato, dom Fernando Panico, que pela primeira vez foi conhecer de perto a manifestação. A visita foi uma promessa feita pelo líder religioso e simbolizou a tendência de uma aproximação entre a Igreja formal e as manifestações da religiosidade popular numa terra onde o Padre Cícero é, para o povo, tão importante quanto qualquer santo oficialmente canonizado.
AUGUSTO PESSOA.
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