Patrimônio Vivo, Zé de Bibi teima no Cavalo Marinho
Mestre é fundador do Cavalo Marinho Tira Teima, com 57 anos de tradição; e do Sítio Histórico do Cavalo Marinho, espaço aberto a visitação em Glória do Goitá.
Por Marcus Iglesias
“Sinto uma energia forte, uma atitude que faz com que eu perceba o desenrolar da cultura popular, e me encho de emoção. Eu sambo de cair o cabelo. É isso que eu sinto quando estou numa sambada”. A história de um dos Patrimônios Imateriais do Brasil, o Cavalo Marinho, ainda é contada com força e vigor por Zé de Bibi, um dos últimos mestres atuantes desta brincadeira na Zona da Mata pernambucana. É ele também o responsável pelo Sítio Histórico do Cavalo Marinho, localizado no Sítio Malícia, zona rural de Glória do Goitá, um espaço aberto para visitantes e pesquisadores.
“Eu sou o mais antigo mestre daqui da região. Sou rei do Cavalo Marinho. Não me espanto, não tenho medo e nem fico pra trás na brincadeira. O que vier, eu enfrento”. Aos 19 anos, Zé de Bibi deu início ao seu sonho de ter um brinquedo próprio e, em agosto de 1961, saiu com outros folgazões com o Tira Teima, que completa 58 anos de história em 2019. Motivos não faltam para demostrar porque ele mereceu receber em 2018 o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Segundo ele, para ser mestre é necessário saber fazer tudo dentro de uma brincadeira.“Quando precisa, toco rabeca, bombo, ganzá, faço todos os personagens, com toda qualidade. Quem é que bota o Quebra-Pedra? O Perna de Pau? Caboclo de Pena? Zé de Bibi bota! Quem quer quebrar uma garrafa e embolar por cima? Zé de Bibi vai! Faço um pantim tão grande no Cavalo Marinho que o pessoal estranha, acha que tem magia no meio, mas é mentira isso, eu nem gosto dessas coisas. Gosto de confiar no meu trabalho e na fé de que vai dar certo”.
História com o Cavalo Marinho - José Evangelista de Carvalho (nome de batismo) nasceu no dia 7 de julho de 1942, em Glória do Goitá, e recebeu seu apelido ainda criança. “Meu pai morreu quando eu tinha sete anos, e minha mãe se chamava Bibi. Então qualquer coisa que acontecia, se eu invadisse o açude de alguém pra tomar banho ou qualquer outra traquinagem de criança, era Zé de Bibi que me chamavam. E ficou assim até hoje. Se não tiver na documentação Zé de Bibi, está errado”, brinca o mestre.
Ainda muito novo, começou a trabalhar como agricultor, ajudando os pais no roçado – função que o colocou em contato direto com as festividades religiosas ou nos terreiros de sítios vizinhos onde aconteciam apresentações de cavalo marinho e mamulengo. “Eu era muito folião, e quando criança tinha uns primos que brincavam nas sambadas. Acabei crescendo nesse meio e, já grandinho, assisti a uma apresentação do Mestre Zé Anorio, no sítio vizinho. Passei a noite todinha fazendo questão de ficar ali atrás do banco, escutando as toadas e vendo as personagens que apareciam, as glosas”. Com essa história na cabeça, Zé de Bibi prometeu a si mesmo que, quando crescesse, teria seu próprio Cavalo Marinho.
Foi nesse ambiente fértil que teve seu primeiro contato com a brincadeira e aprendeu as tocadas, cantigas e personagens, apenas observando os outros mestres. “Passei um bom tempo fazendo alguns serviços, apanhando capim. E fazia isso cantando uma loa, criando outra, sempre dizendo aos camaradas que, quando fosse maior, ia ter o meu brinquedo”.
Em 1958, foi convidado pelo Mestre Severino da Cocada para brincar mamulengo, outro Patrimônio Imaterial, e com ele aprendeu o ofício dessa brincadeira lúdica.“Existia um mestre chamado Biu da Cocada, vizinho de um homem que eu trabalhava, que me chamou pra trabalhar com ele com mamulengo. Fui bater triângulo, depois passei para o bombo e, em seguida, fui para a torda (tenda do mamulengo). Foram mais de anos fazendo as personagens lá dentro”, relembra.
“Um dia eu cheguei pra Seu Biu e disse que queria mesmo era realizar meu sonho de ter minha brincadeira. Ele me disse assim: ‘Que nada, Zé. Cavalo Marinho é muito complicado e arriscado. Eu só quero brincar com meu mamulengo esse ano e lhe vendo depois. Ai você fica com uma brincadeira mais maneira pra você’”.
“Eu disse que não queria mai
s mamulengo porque era muito calor dentro da torda, a gente não vê ninguém, ninguém vê a gente. Eu queria um Cavalo Marinho porque ele é público, eu vejo o povo, o povo me vê. E mamulengo a gente fica naquele abafado, um calor danado. Ai ele revidou: ‘Cavalo Marinho é brincadeira quente, viu?’. E eu respondi: ‘Pois vou mostrar a todo mundo que vou fazer o meu’”.
s mamulengo porque era muito calor dentro da torda, a gente não vê ninguém, ninguém vê a gente. Eu queria um Cavalo Marinho porque ele é público, eu vejo o povo, o povo me vê. E mamulengo a gente fica naquele abafado, um calor danado. Ai ele revidou: ‘Cavalo Marinho é brincadeira quente, viu?’. E eu respondi: ‘Pois vou mostrar a todo mundo que vou fazer o meu’”.
Mestre Severino da Cocada acabou vendendo o brinquedo para outra pessoa, enquanto Zé de Bibi seguiu com seu sonho, convidando outros amigos para participar com ele da brincadeira. “E o povo topando. A gente começou a ensaiar numa palhoça de capim, e todo sábado a gente ia lá brincar. E foi aí que o povo acreditou que Zé de Bibi ia fazer seu Cavalo Marinho”.
Nascimento do Tira Teima (57 anos de tradição) – A primeira apresentação do espetáculo foi no dia 26 de agosto de 1961, quando Mestre Zé de Bibi tinha 19 anos.“Depois de um ano inteiro treinando e fazendo as fantasias, a gente saiu pra rua. As peças eu comprei com um dinheiro que nem dava pra pagar tudo, mas na primeira sambada a gente pagou o restante com o recolhido na noite”.
Zé de Bibi recorda que na manhã daquele dia o Mateus disse que um colega chamado Zé Pifino queria vender o boi dele. “A gente ia fazer o trabalho sem a personagem do Boi e do Cavalo, porque não tínhamos ainda, por falta de dinheiro. Eu já tinha tudo, bombo, rabeca, ganzá. Mas fiz uma catação com os meninos e depois da vaquinha arrumei o restante do dinheiro pra ir buscar o boi. Trouxe não só ele, mas o Cavalo e a Burra também, só que veio tudo ‘malamaiado’. Quem compra sem vê dá vontade de ser cego. Eu tinha tudo direitinho. Mas a gente brincou mesmo assim e representou a história do Boi e do Cavaleiro”.
Perfeccionista e jeitoso com seu trabalho desde o começo, no dia seguinte Zé de Bibi foi até Lagoa de Itaenga e comprou vários adereços pra ajeitar o restante das fantasias.“Cobri os bichos com novas roupas e no primeiro sábado de setembro a gente já se apresentou com tudo bonito. E o povo ficava admirado como a gente fazia um trabalho daquele. Ponte-Melindrosa, Guerreiro, Caboclo de Pena, Quebra-Pedra, Quebra-Vidro, eu já tinha minha ideia de fazer e fiz tudo direitinho. Até hoje eu faço o que eu quero dentro do Cavalo Marinho e não levo desvantagem porque eu estou preparado”.
A primeira apresentação aconteceu na própria vila de Zé de Bibi, no Sítio Malícia. Depois, no primeiro sábado de setembro, foi em Massaranduba. “O povo tomou gosto, e tive comigo no começo dois folgazões antigos, que era Zé Mané e Zé de Ciço. Ai foi que a brincadeira bateu forte deu certo. Fomos brincando, brincando, e até hoje a gente segue nessa história. Outros inventaram também de brincar naquela época, mas brincavam meio ano, meia safra. Porque como o cabra me disse lá atrás, ‘Cavalo Marinho é brincadeira quente’”.
Hoje em dia, Mestre Zé de Bibi tem quatro brinquedos que farão uma rodada de sambadas em março deste ano na sua vila. “Além do Tira Teima, criamos o Barabá, o Formigão e o Mirim. O Tira Teima é porque o povo dizia que eu não ia conseguir sair com o brinquedo. O Barabá é por conta da história da toada, já o Formigão é porque a cabeça do boi parece uma formiga tanajura”, explica.
Mas uma de suas paixões atuais é o grupo Mirim, no qual brincam mais de 15 crianças,“porque quando os meninos olham querem brincar também. Chama a atenção, viu? Os meninos sambando é bonito que só de ver. E sambar mais do que os meus eu acredito que tenha não. Os meninos fazem cada manobra que nem eu fazia”.
Sítio Histórico do Cavalo Marinho - Ao longo dos anos, Mestre Zé de Bibi colecionou histórias, vivencias e um acervo de peças e indumentárias antigas que contam a história desse Patrimônio Imaterial do Brasil. Construiu em seu sítio uma vila batizada de Sítio Histórico do Cavalo Marinho, com a preocupação de preservar esta tradição e de tornar o local um reduto para salvaguardar a brincadeira.
Hoje o Sítio Histórico conta com o único Museu do Cavalo Marinho do Brasil, e é um local que guarda as características dos antigos vilarejos, com capela, biblioteca comunitária, casa de farinha, bodega e pequenas casas, uma verdadeira viagem no tempo. Com este trabalho dedicado à salvaguarda da brincadeira, conquistou em 2009 o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Iphan.
“Eu tenho fantasia demais, todo ano eu faço uma. Comigo é assim, eu gosto de tudo novo, diferente daquela época que a gente passava uns quatro cinco anos vestindo a mesma roupa. A roupa de baiana eu mando fazer, mas as golas, fantasias, chapéus, mascaras, tudo sou eu. E eu aprendi vendo os outros fazendo. Eu não sou bonito, mas só gosto de coisa bonita”, ri o mestre.
Quando começa o período escolar, o Sítio Histórico recebe no mínimo duas escolas todo mês. “Vem gente de Glória, Lagoa de Itaenga, Condado, Jaboatão, de tudo que é canto. Como cada professora gosta que eu conte uma história, eu acabo representando de tudo um pouco. Cavalo Marinho, mamulengo, coco de roda, ciranda. Tenho de tudo. Terno de maracatu, de São Gonçalo, todo tipo de terno eu tenho guardado aqui dentro, sem falar nas dezenas de personagens como Baiana, Galante, Mateus, o Burro, o Cavalo, a Burra, entre outras”.
Com a visita de tantos estudantes, teve também a ideia de construir uma Biblioteca Comunitária na região. “A gente teve a história de criar um ambiente de leitura aqui na redondeza e recebemos muitas doações de livros na época”.
Zé de Bibi detalha que, durante o ano, sua rotina é bastante intensa, tanto na recepção de visitantes no Sítio Histórico como também dando oficinas pelo estado. “Ano passado teve um dia que tinham três escolas aqui, de Lagoa de Itaenga, Glória e Condado, e eu estava na biblioteca de Lagoa de Itaenga dando aula. Quando voltei, a gente teve que ir lá para o cantinho da vila pra poder sambar porque não tinha espaço com tanto ônibus estacionado aqui. É um movimento que quando começa não para. Vem escola particular, da prefeitura, é escola pra todo lado”.
O espaço é hoje mantido pelas suas mãos e as de seus familiares. Ao longo da vida, casou-se três vezes, teve 14 filhos, 19 netos e 4 bisnetos. “Os filhos foram se casando e eram bons folgazões, mas não brincam mais. Estou agindo com os netos que é pra continuar com a brincadeira viva”.
Essa ação cultural de Zé de Bibi, com a proposta de ensinar sua arte às crianças das cidades vizinhas e levar os jovens a interagir diretamente com esse patrimônio cultural, começou em 2006, quando o mestre foi instrutor do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI.
“Como meus filhos foram saindo da brincadeira, acabou que eu não tinha quem doutrinar como fazia com os meus. Mas me agarrei aos netos e às outras crianças daqui. Se você assistir à sambada do Cavalo Marinho Mirim você fica impressionado. Eu botei o Quebra Vidro, chamei e ninguém quis ir pra roda. Mas depois que o primeiro entrou, todo mundo quis ir também. Tem que ter uma doutrinação pra chamar atenção. Foi o que eu fiz e sigo fazendo”.
Sambadas com o mestre - Uma média de quinze folgazões acompanha Zé de Bibi durante as sambadas. “Dependendo do tempo, se a gente brincar a noite todinha, nem contamos a quantidade de personagens. Personagem de cavalo marinho é meio ligeiro, cinco ou seis glosas pra cada um está bom demais. E hoje é difícil a gente brincar a noite toda. Fomos a Lagoa de Itaenga, por exemplo, e ficamos até duas horas da madrugada. O povo querendo mais, mas a própria organização pediu pra parar. Ai a gente encerra que é pra não brincar a pulso”, conta, um tanto decepcionado.
Para ele, uma boa apresentação de Cavalo Marinho é aquela que começa de noite e vai até o sol raiar. “A gente tem que fazer a matança do boi, a roda grande, e as personagens são muitas. O objetivo é fazer a história crescer. A gente quer é mostrar a diversidade para o povo ter noção de que temos condições de apresentar muita coisa”.
Zé de Bibi explica o que diferencia um Cavalo Marinho de bombo de outros estilos, com o de bexiga. “Tem diferença nas toadas. As personagens são diferentes também, na forma de dançar, porque a gente vai pela tacada do bombo, que decide o jeito de se sambar. O cara tem que ser bom na sambada de bombo pra desenrolar as pernas e os quadros nas manobras de corpo. Se ficar naquela sambadinha maneira dá certo não. Mas a gente tem também aqui a rabeca, bexiga, ganzá e o pandeiro”.
De acordo com o mestre, antigamente todos os outros cavalos marinhos da Zona da Mata de Pernambuco tocavam com bombo. “Eu conheci vários outros mestres que diziam que nunca houve de bexiga. Ela era usada pelo Mateus pra dar lapada na meninada. Mas eu não gosto disso. Se bater no meu filho eu meto-lhe o pau. E pra dar no filho dos outros eu quero também não. É pra brincar, porque senão pode acabar em confusão. A lapada é no personagem, no Mororó, no Machado, no Sardanha, mas em quem está assistindo, não”.
Quando perguntando quem ele considera como um grande mestre de Cavalo Marinho, ele não pensa duas vezes. “Pra mim, João Pixica é o mais experiente dos mestres. São 102 anos de história, e mesmo cego ele ainda faz o que quer e diz o que quer no Cavalo Marinho. É o maior folgazão da história dessa brincadeira. Não há quem diga que ele tem essa idade pela força que carrega”.
“Outros nomes que me inspiram são Zé Anorio, Pinto, Mané Martins, do Coco da Cimenteira, Mané Sivino e Zé Sivino, de Chã de Alegria. Eles foram os maiores mestres daquela antiguidade. Mas todos morreram, e o único que tem pra contar história é o João Pixica. Toda brincadeira que realizo eu faço questão de pegar ele em casa. Ele me ajudou muito, e vice-versa, e isso pra mim é uma forma de agradecer ao mestre”.
Sobre o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco – Além do reconhecimento em si, que para ele é uma valorização por parte do Governo de Pernambuco em relação à sua história, Zé de Bibi acredita que o que muda na sua vida com este título é a ajuda de custo que vai chegar todo mês. “Isso vai servir pra limpeza dos meus animais, da brincadeira, comprar as coisas que precisam pra sede”, revela Zé de Bibi, que ainda quer organizar a biblioteca e construir um escritório para a Associação Cultural Comunitária de Glória do Goitá, cuja sede também fica na sua propriedade.
“Quero também cavar um poço, porque aqui não tem água. A gente tem que pegar longe e de burro. E, por fim, ter uma pessoa comigo pra me ajudar a trabalhar e a limpar o local. Porque agora quem me reconhece não sou só eu e o povo, é a lei”, completa o mestre.
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