Mestre Saúba – Um Patrimônio Vivo da arte de criar com as mãos os próprios sonhos
Os brinquedos populares do Mestre Saúba resistem ao tempo e unem gerações em torno dos encantamentos que despertam
Por Michelle de Assumpção
Numa casinha simples e de poucos cômodos, no bairro de Vila Rica, Jaboatão dos Guararapes, trabalham dois irmãos de mesmíssimo nome: José Antônio da Silva. Dedicam-se ao mesmo ofício; um como criador, o outro como ajudante. Para não confundir, desde pequenos são chamados por apelidos: Saúba e Cocota. O primeiro ficou famoso em todo Pernambuco: é hoje o Mestre Saúba, criador de brinquedos que já alegraram (no passado, bem mais que hoje) a infância de algumas gerações de crianças. Quem nunca brincou de equilibrar um Mané Gostoso no apertar e soltar das hastes de madeira que o prendem? E quem já rodou um Rói-rói até os ouvidos doerem com o zunido do brinquedo?
Quem conhece Saúba de perto, sabe que ele é inseparável do irmão, homônimo. Cocota está fazendo uma pequena reforma que vai ampliar a estrutura da casa em Jaboatão, onde funciona o ateliê dos brinquedos populares de Saúba. Ele também ajuda na colheita da madeira e no corte das peças do irmão artesão. Saúba, aos 66 anos de idade, costuma passar o dia inteiro no primeiro andar da casa, uma sala com portas abertas para a rua, sem qualquer varanda ou sacada. Quem passa pela rua, já de longe avista Saúba sentado na sacada, com as pernas penduradas, tomando um ventinho e entalhando suas peças.
A sua peça preferida é o Mané Gostoso. Com um galho da embaúba, de mais ou menos dois metros, ele faz uns quarenta bonecos articulados. São cinco partes: tronco, duas pernas e dois braços. Todos são furados e amarrados com barbante. O boneco é preso, pelas mãos, a duas hastes de madeira que, pressionadas na base, fazem os bonecos pularem de um lado para o outro, simulando os movimentos de um acrobata.
A rotina do mestre é acordar de madrugada para começar a trabalhar. Às 4h, já está de pé. Toma café e segue para a rotina de fazer os brinquedos. Saúba gosta de ter o estoque sempre bem diverso e com número grande de peças, pois as encomendas, quando chegam, sempre são de uma quantidade razoável de peças. O mestre não gosta de ser pego desprevenido. Só descansa quando viaja. Estando em casa, os Manés Gostosos, Ratinhos, Rói-róis e Borboletas ocupam até o espaço da sua cama. “Ficam lá espalhado. No final do dia, quando vou deitar, ligo a televisão e fico ali amarrando os bonecos, até dar o sono”, conta. No final de cada mês, a produção chega a umas duzentas peças, de cada tipo de brinquedo.
Depois do Mané Gostoso, que é mais popular, os ratinhos móveis feitos de papel machê são bastante procurados. Para fazê-los, Saúba encaixa uma espécie de carretel debaixo da peça, com uma linha enrolada. Montado o brinquedo, é só puxar a linha por cima do ratinho e, ao soltá-la, o brinquedo se move sozinho. Cocota sabe todos os segredos do irmão. Mestre Saúba nunca segurou as informações que foi adquirindo, até porque, foi observando outros profissionais aprimorou suas técnicas e criou outras.
Mesmo antes de ser titulado Patrimônio Vivo de Pernambuco, em agosto de 2019, Mestre Saúba já cumpria a missão de repassar seus conhecimentos sobre o ofício dos brinquedos populares. Fato que se espera de um verdadeiro mestre. Começou dentro da própria casa. Além de Cocota, seus próprios filhos, Evinha e Carlos José, também aprenderam com o pai. A neta Maria Júlia, de 11 anos, hoje também ajuda a montar Mané Gostoso. Mestre Saúba também passou a ser um artista requisitado em eventos escolares, onde faz curtas demonstrações para alunos do ensino infantil e fundamental. “Sou sempre chamado às escolas para mostrar como faz para as crianças, e já levo tudo cortado, só para eles pintarem e a gente montar junto. É um boneco muito fácil e todos ficam encantados”, conta.
BRINQUEDO NA ROÇA – Mestre Saúba nasceu no município de Pombos, em 10 de março de 1954. Seus pais eram agricultores e, como toda criança que nasce e cresce na roça, não demorou muito para que suas mãozinhas estivessem na lida da enxada. A dificuldade do trabalho no campo crescia proporcional à sua força de menino. Limpou mato, alimentou bichos, cortou cana e aos 14 já carregava uma Maria Fumaça com grandes transportes da cana. A dureza da rotina no campo, que retirou-lhe o direito básico de ir à escola, pelo menos não destruiu a necessidade do brincar e do encantamento.
O trabalho debaixo do sol causticante do Agreste, rendeu ao menino uma pele que não bronzeava, mas ficava rosa, vermelha como uma formiga saúva, ou saúba, como chamava o povo. Daí veio o apelido. Com muito trabalho e pouco tempo, e nenhum dinheiro para divertimentos, o menino Saúba aprendeu a fazer carrinhos de madeira com pedaços de pau encontrados na usina. “Era o que tinham para brincar”. Dali a pouco, estava fazendo por encomenda, para outros garotos da região. “Dia de domingo, a gente brincava de fazer esses brinquedos. Ninguém ensinou. Eu fazia carrinho, rolimã, fazia usina, burrica”, conta. Burrica é uma espécie de “roda-roda”, um pequeno carrossel. Saúba nunca imaginou que levaria aquela diversão como um ofício na vida, mas aos poucos foi se transformando num sonho de aprender cada vez mais, de ser um mestre daquela profissão.
“Eu mesmo fazia com minha inteligência. Não tinha energia na minha mocidade, nós éramos soltos na rua, não tínhamos medo de nada e éramos felizes”, recorda. Caso fosse possível mudar alguma coisa do seu passado, conta que teria insistido para que o pai tivesse o deixado ir à escola. O homem, no entanto, só queria que os seis filhos trabalhassem para ajudar no sustento da família. Hoje, Saúba acredita que é tarde para aprender, mas lamenta por ter sempre que sair acompanhado, de filhos ou parentes, ou não consegue resolver coisas simples do dia-a-dia. “Mãe diz que quem não sabe ler, é cego. Hoje me faz falta. Eu chego em ambiente luxuoso e fico embaraçado”, relata.
Se não sabe ler, por outro lado, Mestre Saúba sabe se comunicar como poucos. Sua inteligência é nata, e sabe disso desde menino, quando inventava brinquedos e brincadeiras. Aos vinte anos, quando o pai morreu, as dificuldades aumentaram e ele veio com a mãe, além de mais quatro irmãos, morar em Jaboatão. Estava disposto a qualquer trabalho. Limpar mato, trabalhar na construção civil, o que aparecesse. Saúba não sabia que seu sonho estava próximo de virar realidade. No primeiro trabalho que conseguiu, precisava carregar e transportar material de construção, com ajuda de um burro. Trabalhou como vigia e como carpinteiro de uma grande construtora.
Continuava fazendo os brinquedos, mas ninguém de seu conhecimento dava muita importância. Estava só, até conhecer a cigana. Maria do Socorro vendia bonecos de madeira em feiras de rua na cidade de Moreno. Saúba, que vivia querendo aprender como se fazia artesanato, sem sucesso em encontrar alguém que lhe passasse os segredos, foi convidado pela cigana para ir até sua casa. Lá, conheceu o pai e a mãe da mulher. Era uma família de artesãos. Saúba casou com a cigana e tiveram dois filhos. Hoje, eles moram em São Paulo e não querem saber de artesanato. “Estão muito bem de vida”, conta o pai.
Foram dez anos ao lado da cigana Socorro. Foi com ela que aprendeu a fazer o Mané Gostoso e o ratinho. O casal via os brinquedos em feira e faziam igual ou adaptavam. Rodavam por tudo quanto era feira, parques e praças de Pernambuco, onde tivesse criança. “Hoje, o celular está tirando a atenção da criança, mas antigamente elas não podiam ouvir o som do rói-rói ou da borboleta, que ficavam encantadas e queriam ir atrás. Vendemos muito”, conta.
“As borboletas, eu criei depois que me separei da cigana”, lembra Saúba. Ele conta que desenhou e montou a peça junto com o irmão, Cocota. O brinquedo é composto por duas asas de madeira coloridas, que são presas a uma longa haste de madeira com rodinhas. Ao empurrar o cabo, as asas batem fazendo um barulho chamativo.
Atualmente, o mestre deixou de andar por praças e feiras. Por muitos anos, foi figura cativa nas feiras do pátio do Museu do Homem do Nordeste, que lhe deu fama entre os estudiosos da arte popular. Foi nesta temporada que seus caminhos se abriram. Os colégios levavam as crianças para visitar o estande do Mestre Saúba e elas não saíam de lá sem comprar um boneco dele. Dali, era convidado para outros eventos, incluindo as oficinas nas escolas. Circulou muito também pelos mercados da Encruzilhada, Madalena, São José e Casa da Cultura. O povo ouvia de longe o ruído do Rói-rói de Saúba e se aproximava, ciente da riqueza que iria encontrar.
Brinquedos como aquele nunca estariam numa loja do centro ou de um shopping. Encantavam não só as crianças, mas os próprios adultos, que sempre tinham uma história para contar de sua própria infância, quando confeccionar o próprio brinquedo era prática habitual. Hoje em dia, Saúba não circula mais pelas praças, parques, feiras e eventos, como fazia no passado. Por outro lado, sua produção criativa é a mesma. Pelo menos uma vez ao mês, vai numa mata, perto de casa, buscar a embaúba.
Ele próprio criou o transporte usado para a missão. Tem direção, freio, duas rodas e uma pequena caçamba. Desce na banguela até o lugar onde são recolhidos os galhos da planta. Depois, sobe empurrado por ajudantes, de volta à casa/ateliê de Saúba. A madeira vira Mané Gostoso, Rói-rói, Ratinho e Borboleta, que podem ter perdido lugar nas estantes das crianças. No entanto – quanto mais passa o tempo, e Saúba resiste com sua arte – ganham espaço na memória afetiva do povo e na vida de quem entende a importância do brincar que conta sobre nossas tradições, antepassados e histórias.
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