O Sertão do vaqueiro nas mãos do Mestre Aprígio
Patrimônio Vivo de Pernambuco, o mestre ficou famoso nos anos 70, quando a indumentária do vaqueiro - uma de suas especialidades - passou a ser usada por Luiz Gonzaga
Michelle de Assumpção
Quando menino, José Aprígio Lopes passava a maior parte do seu tempo ajudando o pai a cuidar dos animais que criava. Sua função era dar banho, água e levar os bichos para o mato, em busca de algum alimento na vegetação escassa da caatinga. Era um sitiozinho em Exu, Sertão do Araripe, onde nasceu. De sol a sol, inclemente, era todo dia a mesma coisa. Os meninos só tinham uma horinha, depois do almoço, que o pai autorizava para que tirassem um descanso. Enquanto todos ficavam por ali, cochilando ou sem terem muito o que fazer, Aprígio pegava um pedacinho de couro, conseguido nos lixos de um sapateiro da vizinhança e, escondido do pai, nos fundos do quintal, desenhava um outro futuro.
Um sapateiro da comunidade costumava jogar fora retalhos de couro e, quem tivesse a sorte de chegar na hora do descarte, levava os melhores pedaços. “Era um monte de menino saindo com sacolas de restos de couro”, recorda Aprígio, que estava sempre entre eles. Em casa, tentava as primeiras peças no intervalo da lida na roça. Comprou cola, faquinha, esmeril, compasso. Da primeira vez gastou quase uma lata inteira de cola para fazer uma peça. Ia aprimorando só de observar.
“Eu via as peças de couro feitas por outros: chapéus, enfeites, bainha de faca, de facão, essas coisas que fazendeiro usa, e tentava imitar. A primeira peça boa foi um pé de alpacarta”, conta Mestre Aprígio que, no próximo dia 25 de maio, completará 80 anos de idade. Menino, não teve tempo, nem permissão, de ir à escola. O pai não via futuro nos livros, e só valorizava o trabalho na terra. Por isso foi que, só quando ele morreu, que Aprígio se libertou. Aos 19 pôde se dedicar a seguir com o ofício que escolheu, a partir do aprendizado adquirido apenas no instinto e observação.
Um amigo do seu pai, que sabia de seu trabalho paralelo no fundo do quintal, o levou para trabalhar numa oficina de couro que produz celas, na cidade vizinha do Crato, já Ceará. Alertou que era uma vaga provisória, mas que, se Aprígio trabalhasse bem, tinha chance de ser contratado. O jovem artesão pegou suas poucas roupas e deixou a casa da mãe. Ficou três anos na oficina do seu Juarez, com quem aprendeu a fazer todo tipo de peça de vaqueiro, além das celas.
Os anos de aprendizado ao lado de profissionais experientes, como o seu Juarez, não são a única justificativa para Aprígio ter se destacado entre tantos da região, que também trabalhavam com o couro. Aprígio tinha um dom, uma habilidade manual rara que começava a fazer seu nome por todo Sertão do estado. Estava prestes a mudar mais uma vez de cidade. Serra Talhada foi um convite para terminar uma encomenda. Estimou que ficaria quinze dias na fazenda do contratante, até acabar o serviço dos arreios, ou seja, o conjunto completo de peças usadas numa cavalgada. Passou a ir e voltar, entre o Crato e Serra, em intervalos cada vez menores.
“Quando deixei a oficina de seu Juarez, no Crato, eu comecei a pegar encomendas de vários clientes. O pessoal parava para olhar o que eu desenhava e costurava, e ficava impressionado, perguntando como eu trabalhava com uma delicadeza daquela. Uma coisa bem acabada. Saía um falando pro outro. Agora a gente tem um mestre, eles diziam. Era peça para homem nenhum botar defeito”, orgulha-se. Os trabalhos em Serra Talhada ficaram cada vez mais constantes. E chegou um momento que Aprígio terminou se apaixonando por uma moça em Serra Talhada. Casou, teve filhos, e ficou por longos dezoito anos.
Já conhecido e respeitado em toda região, Aprígio conheceria fama no ano de 1979. Foi numa tarde desse mês de maio, que recebeu a encomenda mais valiosa de toda sua carreira. Luiz Gonzaga queria um gibão novo. Estava cansado de suas indumentárias e queria algo mais vistoso, chique, para usar em suas apresentações. O nome do Mestre Aprígio chegou aos ouvidos de Luiz Gonzaga por intermédio de um sobrinho do artesão, Josseí, que conhecia o Rei do Baião. Luiz Gonzaga foi até Aprígio levando uma peça de couro trazida do Rio de Janeiro, para que o artesão cortasse e fizesse um conjunto completo: perneira, chapéu e gibão. Aprígio passou duas semanas matutando, fazendo e refazendo desenhos, até chegar num molde que achou que seria do agrado do Rei do Baião. Tanto satisfez que lhe rendeu dezenas de outras encomendas, além de uma grande amizade. Luiz Gonzaga, sempre que ia a Exu, passava em Ouricuri, para um dedo de prosa e um cafezinho com Aprígio.
Luiz Gonzaga abriu as portas para que o Mestre Aprígio passasse a receber encomendas de outros artistas famosos, como Dominguinhos, Alcymar Monteiro, Santanna, Waldonys, entre tantos outros. “Para chegar onde cheguei, com esse reconhecimento, foram muitos anos de trabalho com muitos artistas usando o meu trabalho. A batalha foi grande, mas hoje estou aqui, repassando para filhos e netos”, conta o mestre.
Atualmente a oficina de seu Aprígio voltou a ser em Ouricuri. Um salão cumprido e estreito. Na parte da frente é a lojinha da família, com os artigos exeibidos para venda; na parte de trás ficam as bancadas com as quartorze máquinas de costura. Dois filhos trabalham com ele na oficina: Isídio Lopes faz as miniaturas que vemos expostas nas paredes do ateliê. São chaveiros em formato de chapéus, além de sandálias, bolsas e calçados. Romildo faz as encomendas maiores recebidas pelo pai. Ele conta que o pai adaptou uma das máquinas para que ela tivesse o ponto perfeito para seus cortes e desenhos. “Todos os trabalhos passam primeiro por essa máquina criada pelo meu pai. Ela que recorta e perfura o couro. Após a perfuração, o desenho no couro é feito manualmente, na faquinha”, explica Romildo.
Quando a reportagem chegou para entrevistar seu Aprígio, a produção do ateliê estava toda voltada para a festa do Aniversário de Gonzagão, em Exu, que acontece tradicionalmente todo dia 13 de dezembro. É venda na certa: de chapéus, gibãos, e toda indumentária característica do vaqueiro. São compradas, não necessariamente, pelos vaqueiros. Esses representam cerca de 10% dos clientes da oficina. “Quem compra mais são os artistas, políticos, e os admiradores da cultura nordestina, que levam como lembrança, para presentear quem é de Nordeste e vive fora. Recebemos encomendas de todas as partes do país”, conta o mestre.
Na sua simplicidade, Mestre Aprígio representa o sertanejo forte, criativo, generoso e fortalecido pela cultura que carrega e transmite por décadas. “Meus chapéus serviram de coroa para dois reis que conheci, Luiz Gonzaga e Dominguinhos”, diz. Além dos filhos, o neto José Joelson Lopes também já segue com dedicação o ofício repassado pelo avô. Os herdeiros fazem seu Aprígio sentir que sua arte está perpetuada. Ele costuma dizer que, quando vê alguém que aprende com ele, cortando o couro, ponteando e montando uma peça, sente-se como se imortal fosse. “Mesmo quando a minha matéria não mais existir, eu vou estar ali”, sentencia.
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