Marcus Iglesias
Mais mulheres atuantes na cultura é um dos avanços sociais que Pernambuco tem vivenciado nos últimos anos. A Troça Carnavalesca Mista Cariri Olindense, Patrimônio Vivo de Pernambuco, por exemplo, conta atualmente com seis mulheres na diretoria. No entanto, ainda há muito a ser discutido sobre este assunto quando se fala em Patrimônio Cultural, principalmente o Imaterial, onde constam as práticas, saberes e formas de expressão da cultura popular. Foi essa a temática do minicurso A Política de Patrimônio Imaterial em Pernambuco e Questões de Gênero, ministrado na última quarta-feira (29) pela pesquisadora e técnica de Patrimônio Imaterial da Fundarpe, Jacira França, no Centro Cultural Correios Recife.
Jan Ribeiro/CulturaPE
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Seminário Gênero e Patrimônio Cultural
A atividade fez parte da programação do III Seminário Gênero e Patrimônio Cultural, que começou na última terça (28) e foi realizado pela Secretaria de Cultura, Fundarpe, Secretaria da Mulher e outras instituições, como o Iphan e Ministério da Cultura. O minicurso contou com a presença de várias pesquisadoras da área, como a jornalista Maria Alice Amorim, além de mulheres representantes de blocos líricos, cirandas, maracatus, grupos de frevo e Patrimônios Vivos de Pernambuco, como a já citada Troça Carnavalesca Mista Cariri Olindense e a Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo (SOBAC).
“A gente trabalha com a ideia de que patrimônio é uma das formas de conhecermos a nossa cultura, saberes, formas de expressão, e mais do que isso, é saber quem faz”,explicou Jacira França, que primeiramente tratou de conceitos sobre o que é ser mulher, através de temas como natureza e cultura, diferença versus desigualdade, naturalização e papéis sociais. Em seguida, se aprofundou sobre algumas dimensões, como a simbólica (estereótipos), a organizacional (desigualdade no mercado de trabalho) e subjetiva. “Nesse último caso colocam a mulher sempre como detentora da emoção, do descontrole, enquanto o homem, a razão. Precisamos quebrar essa ideia”, opinou.
“Voltando à questão do Patrimônio Cultural, temos a dimensão Material, que é onde estão os patrimônios culturais, sítios arqueológicos, espaços de memória e acervos. E temos o Imaterial, que são as formas de expressão, saberes, expressões, lugares culturais e povos tradicionais. Essas duas esferas andam unidas. No caso do Patrimônio Imaterial, falamos em Processos de Registro, algo que está definido desde a Constituição de 1988, com normas e leis que instituem esse patrimônio. Na época isso foi um avanço porque só se tinha uma ideia de patrimônio se fosse Material, como as igrejas e prédios públicos”, detalhou a pesquisadora.
Jan Ribeiro/CulturaPE
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Jacira França
“E como é atualmente a participação da mulher nos espaços de cultura? Seja preparando a comida dos brincantes que saem na folia, seja preparando as roupas da sua agremiação, seja dando suporte apoio e moral aos familiares e participantes do grupo, a presença da mulher sempre foi constante, mas é sobre a qualidade que estamos querendo refletir. E não falo em qualidade no sentido valorativo da atividade, mas refletir sobre qual o papel da mulher dentro destes espaços”, sugeriu Jacira França.
Bens registrados - Pernambuco é um dos estados brasileiros que mais tem registros do tipo no Brasil e a pesquisadora trouxe à tona alguns exemplos da presença feminina neles. O primeiro a ser destacado, a Feira de Caruaru, levantou questões sobre a produção das artesãs da região do Alto do Moura, bem como suas lutas e conquistas. “Nem é preciso dizer que o predomínio de mestres é muito maior. No Alto do Moura há poucas mestras, como a Marriete, mas justamente percebendo isso elas fundaram a Flor do Barro do Alto do Moura, um grupo que está em fase inicial, mas que propõe discutir qual o papel delas no artesanato e tem passado o saber cultural para as próximas gerações de mulheres da região”, destacou a pesquisadora.
Sobre o Frevo, Patrimônio Imaterial do Brasil desde 2007, e da Humanidade (título dado pela Unesco), desde 2011, Jacira França indagou sobre a presença das mulheres nas composições de Frevos Canção ou de Blocos Líricos. “Quando a gente fala de compositores sempre falamos de Nelson Ferreira e Capiba. E as compositoras? Será que não havia mulheres nesses espaços? Não havia ou foram invisibilizadas?”, questionou. “Existem outras reflexões, como o assédio que as mulheres sofrem nesses espaços, como a exigência sobre o corpo de uma passista. Questões de gênero que existem e muitas vezes não são problematizadas. Na revalidação do título de Patrimônio Imaterial, que é dada a cada dez anos, a gente espera que se implementem políticas públicas que possam ajudar a desconstruir essa realidade”.
Chico Ludermir
Chico Ludermir
O Maracatu Coração Nazareno é exemplo neste campo
Outros bens, como os Maracatus de Baque Solto e Virado, foram citados no minicurso.“Imaginem a dificuldade das mulheres se inserirem nestes espaços predominantemente masculinos. Mas existem grupos que saem dessa lógica, por exemplo, o Maracatu Coração Nazareno de Baque Solto, composto apenas por mulheres. A coordenadora do projeto, Eliana Rodrigues, disse numa entrevista pra mim que ‘mais do que uma simples manifestação cultural, o maracatu feminino é uma forma simbólica de mostrar o empoderamento da mulher’”, exemplificou a técnica da Fundarpe.
Também foram dados outros exemplos de destaque feminino em bens culturais registrados, como a Capoeira, o Cavalo Marinho, os Caboclinhos e o Mamulengo. “Este último caso também conta com poucas mestras. Mas em Glória do Goitá existe agora o grupo Mamulengando Alegria, fundado em 2008, que tem a mestra Cida Lopes como manipuladora do boneco. Isso aconteceu porque o pai dela permitiu ou possibilitou que ela fizesse isso, e no momento que seu mestre não pôde se presentar, ela foi ao palco e assumiu o lugar dele. A partir disso, ela juntou-se com a mãe Marinês Tereza e a prima Larissa Nascimento e fundaram o brinquedo, sustentado exclusivamente por elas”.
“No caso dos Cavalos Marinhos, que é uma brincadeira complexa, de nove horas de apresentação e com dezenas de participantes, temos pouquíssimos grupos no estado, de oito a dez. É um bem cultural que está ameaçado, e um espaço essencialmente masculino. O Cavalo Marinho é uma brincadeira que precisa de políticas públicas pra que a continuidade exista. E a participação das mulheres neste espaço é bastante delicada. Há relatos de mestres e brincantes que não se sentem à vontade com elas na brincadeira, por conta do contato físico que ela exige. E não é nem pela mulher em si, mas por conta do possível marido, filho ou pai que pode estar assistindo à apresentação”, destacou Jacira França.
Em relação aos Caboclinhos, ela fez uma provocação. “Qual o corpo feminino que dança nessas agremiações? Eu observo que existem mulheres de vários tipos de corpos, mas é uma questão a ser estudada. Como elas se envolvem com os grupos? Como é estar à frente de cordões e abre alas masculinas. Quase não há estudos sobre isso”.
De acordo com Juliana Cunha, técnica do IPHAN que participava do encontro, a discussão de gênero tem sido muito levantada por alguns grupos culturais de bens registrados. “Há alguns grupos de frevo e de capoeira formados por mulheres, por exemplo, que estão se encontrando para discutir especificamente essa questão. Elas discutem não só sobre os comitês gestores que acompanham a salvaguarda do bem registrado, mas também se reúnem e chamam a atenção para a participação da mulher nestes ambientes”.
Ao longo da palestra, Jacira citou algumas políticas públicas do Governo de Pernambuco que estimulam a participação de mulheres de uma forma mais atuante no âmbito da cultural. “O Funcultura, por exemplo, tem uma linha de salvaguarda para bens registrados, que possibilita tratar de algumas questões. O Funcultura Audiovisual tem uma pontuação específica para mulheres e para mulheres negras, o que possibilitou um aumento de 30% delas no edital do último ano”.
Mulheres Patrimônios Vivos - A técnica da Fundarpe apresentou também detalhes que envolvem a Lei do Patrimônio Vivo de Pernambuco, revelando a participação feminina neste espaço. “De 2005 a 2017 a gente teve um total de 51 títulos entregues, entre grupos e mestres ou mestras. Desse total, apenas seis que receberam o título são mulheres, o que representa 18% do todo”, calculou. Além de Selma do Coco (Olinda) e Ana das Carrancas (Petrolina), in memoriam, o título foi concedido a Maria Amélia (Tracunhaém), Lia de Itamaracá (Itamaracá), Mocinha da Passira (Passira) e recentemente à parteira Dona Maria dos Prazeres (Jaboatão dos Guararapes).
Jan Ribeiro/CulturaPE
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O professor Carlos Alberto também participou do encontro
O encontro, voltado diretamente para o público feminino, contou com a presença de mais de 25 mulheres e de alguns homens, dentre eles Carlos Alberto, professor de História da rede estadual. “Esse momento foi muito rico e de muitas contribuições, inclusive pra mim. Que a mulher possa cada vez mais conquistar seu espaço e que nós homens fiquemos atentos para minimizar essa desigualdade na cultura”, disse o professor, natural de Itapissuma.
Daniele Serpa, da diretoria do Cariri Olindense, avaliou que saiu do encontro com mais ideias em relação à participação do feminino na produção cultural. “As mulheres sim fazem acontecer e evoluir, abrir mais caminhos para que outras possam participar das brincadeiras. A Cariri Olindense é uma troça que existe desde 15 de fevereiro de 1921, e era formada só com homens. Depois que eu e mais cinco mulheres entramos na diretoria, há seis anos, desenvolvemos um trabalho que fez com que o grupo conquistasse o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2016. Isso não é pouca coisa”.
Jan Ribeiro/CulturaPE
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Daniela Serpa é dirigente da Troça Cariri Olindense
Já a pesquisadora Maria Alice Amorim, uma referência em Pernambuco quando o assunto é Patrimônio Imaterial, opinou sobre o encontro que “mais do que reverberar em nível pessoal, o minicurso proporcionou uma reflexão de como as pessoas podem reverter várias questões delicadas com políticas públicas. A questão é bem importante em termos de razões conceituais e ordem prática, de como efetivamente agir e buscar essa igualdade e empoderamento”.
Jan Ribeiro/CulturaPE
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A pesquisadora Maria Alice Amorim contribuiu com as discussões