sábado, 29 de abril de 2023

Casinha pequenina (Capiba) - Interpretada por Geraldo Maia

GERALDO MAIA

Com influências extremamente diversificadas, como as de Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Orlando Silva, Elizete Cardoso, Sílvio Caldas, Alceu Valença, Quinteto Violado, Ednardo, Pixinguinha, Cartola, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro; lançou primeiro disco solo em 1999, "Verd´Água", produzido por ele mesmo. Como havia morado 10 anos em Portugal, algumas das músicas foram gravadas no país Lusitano. Nesse disco, regravou sucessos de Pixinguinha e Cartola, sendo eles "Rosa" e o choro-canção "Sejam Benvindos", respectivamente.
O segundo CD, "Astrolábio", lançado em 2001, contou com uma diversidade de gêneros, que foram desde o maracatu zen (como o próprio intitula), coco de rabeca e fado eletrônico até o samba hip hop. O álbum contou com a direção musical de Marcelo Soares, Geraldo Maia e Igor Medeiros. Em 2003, ganhou notoriedade ao interpretar, ao lado do violonista Yamandu Costa, a música "A deusa da minha rua" para a trilha sonora do filme "Lisbela e o Prisioneiro", dirigido por Guel Arraes. No ano seguinte, lançou o CD "O fio da meada", que trouxe releituras de músicas de Luiz Gonzaga, como "Tenho onde morar" (c/ Dario de Souza) e "Feijão com couve" (c/ J. Portela); e de Jackson do Pandeiro, "A ordem é samba" (c/ Severino Ramos).
Em 2007, no lançamento do álbum "Samba de São João", resgatou obras de compositores pernambucanos célebres como Capiba, João Pernambuco, Luperce Miranda, Manezinho Araújo e Irmãos Valença; além de outros menos consagrados, como Artur de Castro, Aldo Taranto, Luiz Peixoto, Heckel Tavares, Jaime Florence, mais conhecido como Meira, Stefana de Macedo, Marcial Mota, Eustórgio Wanderley e Osvaldo Santiago, abrangendo uma época que vai de 1928 a 1955.
No ano seguinte, lançou o disco "Peso leve", que marcou a sua estreia como compositor. Das 12 faixas do disco, todas têm a assinatura de Geraldo, sendo algumas em parceria com compositores como Sérgio Cassiano, João Falcão, Carlos Mascarenhas e Adriana Falcão.
Em 2009, lançou seu sexto disco, "Lundum", que assim com o anterior, contou com composições próprias, que foram as seguintes: "Navenida / Chamada" e "Deixa soar", com Juliano Holanda; Helioiticando, com Marco Polo; "Pega o peixe", "Samba" e "Tristeza", com Paulo Marcondes; "Broto de semear"; e "Que doam-se os brios!".
DISCOGRAFIA: (2009) O fio da meada Lundum - CD (2008) Peso leve - CD (2007) Samba de São João - CD (2004) Samba do mar quebrado - CD (2001) Astrolábio - CD (1999) Verd´Água - CD

Serenata Suburbana (Capiba) - Interpretada por Geraldo Maia

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Miró da Muribeca é o grande homenageado da Praça da Palavra no FIG 2023

João Flávio Cordeiro da Silva chegou a sonhar em ser jogador de futebol, mas o grande legado que o esporte deixaria em sua vida seria o nome que o imortalizou na história da literatura pernambucana e nacional. Por conta de uma comparação com o atleta do Santa Cruz Mirobaldo, ele acabou sendo conhecido por Miró, ou melhor, Miró da Muribeca. É esse o nome e todo o legado cultural que ele carrega que batizará a Praça da Palavra do 31º Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), homenageando a vida e a obra do poeta nesta edição. Miró da Muribeca partiu em 2022, deixando na identidade cultural pernambucana toda uma nova forma de se pensar poesia urbana, fundindo diferentes referências e criando um estilo de recitação e performance nos espaços públicos, se tornando uma grande influência para outros nomes que vieram depois.
Eduardo Siqueira SECULT PE “Miró conseguiu, ao longo da vida, construir uma obra que transcendeu seu corpo periférico e que faz parte do patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, valorizar e preservar sua obra é obrigação de qualquer gestor público de cultura, na medida em que, ao fazer isso, preserva a memória de uma das vozes poéticas brasileiras mais singulares da virada do século 20 e começo do século 21”, afirma Wellington de Melo, escritor e editor, que viveu próximo a Miró nos últimos anos e atualmente trabalha em uma biografia sobre o poeta, que será lançada pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). A Praça da Palavra é um espaço de imersão literária do FIG que promove lançamentos de livros, recitais, contações de histórias, mesas redondas, palestras e outras atividades de valorização e reconhecimento da literatura pernambucana e nacional. A iniciativa é realizada em parceria com a Cepe, editora pela qual Miró possui dois livros publicados, a coletânea Miró até agora e o infantil Atchin!. “Nome referencial da poesia urbana brasileira de todos os tempos, Miró deixou como legado uma vasta obra literária. Intensa, pulsante e formidavelmente lírica, ela reverberava a voz das ruas, condição que o fez um grande cronista da realidade. Recebemos com alegria a iniciativa da Secretaria de Cultura/Fundarpe em homenageá-lo na 31ª edição do FIG, dando o seu nome à Praça da Palavra, o polo dedicado à literatura”, declara João Baltar Freire, presidente da Cepe.
Felipe Souto Maior/SecultPEFelipe Souto Maior/SecultPE Neste 2023, a Praça Souto Filho se tornará a Praça da Palavra Miró da Muribeca, contando com homenagens e ações sobre sua vida e sua obra. “Homenagear Miró é de suma importância para a valorização da Literatura brasileira, pernambucana e local, e contribuirá para o êxito da programação da Praça da Palavra e para o Festival. Miró esteve presente na Praça da Palavra desde sua criação, sendo um parceiro importante da coordenadoria em várias ações”, diz Luciana Lima, assessora da Coordenadoria de Literatura da Secretaria de Cultura. Literatura é uma das linguagens que está com inscrição de propostas abertas para a programação do FIG, com espaço para recitais, contações de histórias, oficinas, intervenções artísticas, dentre outras atividades. O edital de convocatória completo pode ser conferido no Mapa Cultural de Pernambuco (aqui), assim como as inscrições, que seguem até 9 de maio de 2023 (terça-feira). Fonte: PortalCulturaPE

quinta-feira, 27 de abril de 2023

AMILTON TRINDADE

Amílton Trindade Narciso é um jovem escultor do distrito de Vitoriano Veloso (Bichinho), município de Prados, Minas Gerais. Na época em que começou a esculpir a madeira, ele foi considerado umas das grandes revelações desta comunidade de artistas, localizada aos pés da Serra de São José em Minas Gerais. Com o trabalho que vem desenvolvendo desde então, deixou de ser revelação para ser considerado um artista de grande talento, reconhecido entre os apreciadores da arte da madeira.
Ele aprendeu tudo com seu sogro, Martiniano Moreira de Carvalho, o Naninho, outro artista renomado do povoado de Bichinho, cuja história já foi contada aqui neste blog. Segundo Naninho, o jovem Amílton domina, dentre outros desafios, aquele que o ele considera ser o maior de todos: fazer a madeira bruta ganhar leveza e cobrir as figuras 'como um manto de verdade'.
Entre as obras de Amílton ganham grande destaque os anjos e os santos, autênticos representantes do rico barroco mineiro. Mas em seu ateliê em Bichinho a peça que mais chama a atenção é um Atlante de aproximadamente dois metros de altura, esculpida em madeira bruta. A obra se destaca pela beleza e riqueza de detalhes. Atlas, o titã, tem o tronco seminu e o corpo musculoso, os braços estão erguidos sobre a cabeça, como que a suportar o peso da construção onde se encontra inserido. Amílton conta que a peça só saiu de Bichinho uma única vez, por motivo de uma exposição organizada pelo Centro de Artesanato Mineiro em Belo Horizonte. Desde então ela se encontra em exposição permanente em seu ateliê até que apareça um comprador.
Além de ser considerado herdeiro natural da obra de Naninho, Amílton é também responsável, juntamente com muitos outros, pela perpetuação de uma das mais ricas e expressivas tradições de Minas Gerais, a arte santeira. Uma tradição da qual Amílton já faz parte como um dos mais talentosos e expressivos representantes.
Contato com Amílton: Av. Samuel Possa, 263 – Bichinho 36320-000, Prados-MG Tel: (32) 3353-7013

sábado, 22 de abril de 2023

Festival Recife Carinhoso traz o choro para o Mepe

O Festival Recife Carinhoso, que celebra o Dia Nacional do Choro, chega em sua quarta edição nos próximos dias, com eventos realizados no Teatro Isabel e no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), com apoio da Fundarpe. A iniciativa é realizada pelo coletivo Isto é Choro!, e a data celebra o aniversário do emblemático Pixinguinha, 23 de abril, quando será realizado o primeiro dia dos shows. Já no Mepe, as apresentações estão marcadas para o dia 28/4 (sábado), às 16h, com entrada gratuita. O Museu do Estado receberá os shows do grupo Patapiá, que vem desde 2019 realizando experimentações misturando o choro com o baião, frevo e maxixe, e Walmir Chagas, com seu repertório autoral de décadas de carreira. É a segunda vez que o Mepe recebe o Recife Carinhoso, tornando-se um palco consolidado para a celebração de um dos ritmos mais importantes do país. “O choro, enquanto cultura popular, precisa ser fomentado, estimulado, valorizado e salvaguardado. Decidimos celebrar o Dia Nacional do Choro para garantir essa visibilidade e estímulo para os musicistas se aproximarem do ritmo. Nos enche de orgulho e satisfação quando vemos, por exemplo, jovens praticando o choro e frequentando as rodas, isso mostra o quanto ele está vivo. Também fazemos um resgate da contribuição pernambucana ao gênero, que vem desde meados dos anos 1800 e tem uma importância a nível nacional. O Recife Carinhoso é nossa contribuição para deixar o choro vivo”, declara Wagner Staden, diretor-geral. Serviço Festival IV RECIFE CARINHOSO Quando: 29 de abril de 2023 (sábado), às 16h Onde: Museu do Estado de Pernambuco – Mepe (Av. Rui Barbosa, 960 – Graças, Recife – PE) Entrada gratuita

Orquestra de Câmara de Pernambuco dá início ao circuito de música armorial

Uma música que bebe na fonte da tradição popular, mergulhando na raiz do maracatu, do caboclinho, dos aboios e do terno de pífanos, transportando essa riqueza para o universo de uma orquestra. A música armorial, representação artística sonora do Movimento Armorial encabeçado pelo escritor Ariano Suassuna, ganha, nos meses de abril e junho, uma bela homenagem da Orquestra de Câmara de Pernambuco (OCPE). Inspirado nos 50 anos do Armorial, o conjunto, que tem à frente o maestro José Renato Accioly, se lança no Circuito de Música de Câmara – Edição Armorial, anunciando cinco concertos gratuitos em cidades de Pernambuco e do Maranhão. A estreia foi nesta sexta feira, dia 21, no pequeno distrito de Algodões, em Sertânia, Sertão pernambucano. O Circuito de Música de Câmara – Edição Armorial tem produção de Carla Navarro e conta com o incentivo do Instituto Cultural Vale, por meio da Lei de Incentivo à Cultura do Governo Federal. “Este foi um projeto idealizado para 2020, no máximo, 2021, para marcar os 50 anos da música armorial, mas a pandemia nos fez adiar. Estamos muito felizes em poder fazê-lo agora e oferecer às novas gerações a possibilidade de conhecer essa música. Tenho filhos de 26, 28 anos, que não tiveram contato com essa música e com a força do Armorial para a cultura brasileira”, afirma o maestro. Além da pequenina Algodões – que está envolvida na reforma do seu Clube Recreativo para receber pela primeira vez uma orquestra -, serão contempladas no projeto as cidades de Camaragibe (28/4), na Região Metropolitana do Recife, e as maranhenses Santa Rita (9/6) e Itapecuru Mirim (10/6). Completa o circuito a capital pernambucana (23/4). “O Recife entrou na rota porque é a nossa casa, é a sede da Orquestra de Câmara, mas todas as demais cidades não têm tradição em abrigar orquestras. Camaragibe, por exemplo, pela proximidade com o Recife, acaba não recebendo apresentações de orquestras, assim como Santa Rita e Itapecuru Mirim, que também são próximas a São Luís”, ressalta a produtora Carla Navarro. Na caravana da OCPE viajam 25 pessoas, entre músicos, maestro e produção. Em cada uma das paradas do circuito, eles realização um concerto-aula, sempre à tarde, e à noite, o concerto. “Realizamos o concerto-aula com muito carinho, apresentando didaticamente os instrumentos que formam a orquestra, como cada um contribui para o resultado final, e as músicas; no caso, as peças armoriais. Será a hora de falar um pouco do que foi o movimento e as características dessa música que nasceu dentro desta escola”, revela José Renato, que também é maestro assistente da Orquestra Sinfônica do Recife. O maestro explica o que dá importância à produção armorial. “Foi o movimento que mais profundamente mergulhou na tradição popular, no folclore. Ele faz uso da rítmica, das melodias modais nordestinas, da harmonia que essas melodias produzem, dando a esta raiz musical uma roupa de orquestra, uma roupa de sonoridade europeia, por se tratar de uma orquestra com formato europeu, com violinos, violoncelos, contrabaixo e violas, incorporando ainda duas flautas e um conjunto de percussão. Fazendo alusão ao popular, as duas flautas representariam os pífanos; as cordas representariam as rabecas, e a percussão traz a zabumba, o triangulo e o pandeiro da tradição dos brinquedos populares”, conclui. A viagem musical por Pernambuco e Maranhão prenuncia um animado calendário para a Orquestra de Câmara de Pernambuco em 2023. “Temos muita coisa boa para este ano, como mais uma edição do São João Sinfônico, por exemplo. Nosso objetivo, além de oferecer espetáculos pautados pela excelência, é formar plateias. Quando a gente passa por cidades tão carentes de cultura, a gente coloca uma semente no coração daquele público. E é daí, desses momentos, que fomentamos o músico profissional. Temos vários casos de profissionais que despertaram para a música em apresentações como essas. Essa é uma responsabilidade que abraçamos com muita alegria”, finaliza Carla Navarro. Serviço 21/4 – Clube Recreativo de Algodões (Sertânia), 15h (concerto-aula) e 19h (concerto) 23/4 – Concatedral de São Pedro dos Clérigos (Pátio de São Pedro, Recife), 15h (concerto-aula) e 17h (concerto) 28/4 – Teatro Bianor Mendonça Monteiro (Camaragibe), 15h30 (concerto-aula) e 19h30 (concerto) 9/6 – Santa Rita, Maranhão. (local a definir), 16h (concerto-aula) e 19h (concerto) 10/6 – Itapecuru Mirim, Maranhão. (local a definir), 16h (concerto-aula) e 19h Todas as apresentações são abertas ao público.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Banditismo no Nordeste brasileiro Trecho de ‘Guerreiros do sol’, de Frederico Pernambucano de Mello, relançado pela Cepe Editora

CANGAÇO: DO ENDÊMICO TOLERADO AO EPIDÊMICO REPELIDO Vejamos agora o cangaceiro, indiscutivelmente a personagem mais destacada e complexa de todo o elenco que estamos analisando. Em estudo de comparação entre as culturas dos dois grandes ciclos nordestinos, afirmou Câmara Cascudo que o ciclo da cana-de-açúcar não poderia ter produzido o cangaceiro.1 À parte algum exagero retórico que a assertiva parece conter, não resta dúvida de que o homem do cangaço disputa com o próprio vaqueiro a primazia no representar do modo mais completo o conjunto dos atributos e qualidades que caracterizam o homem do ciclo do gado. As noções de independência, improvisação, autonomia e livre-arbítrio conheceram nele seu cultor máximo. Ninguém o excedeu no dar asas soltas ao aventureirismo e ao arrojo pessoal. Ninguém mais que ele soube gozar e sofrer, a um só tempo, as peculiaridades do viver nômade. Foi, a ferro e fogo, senhor de suas próprias ventas, atuando — como se diria com expressão do velho Nordeste colonial — sem lei nem rei. Ao contrário do que teimam em afirmar certos intérpretes, não é possível surpreender uma relação de antagonismo necessária entre cangaceiro e coronel, tendo prosperado — isto sim — uma tradição de simbiose entre essas duas figuras, representada por gestos de constante auxílio recíproco, porque assim lhes apontava a conveniência. Ambos se fortaleciam com a celebração de alianças de apoio mútuo, surgidas de forma espontânea por não representarem requisito de sobrevivência nem para uma nem para outra das partes, e sim, condição de maior poder. Por força dessas alianças, não poucas vezes o bando colocava-se a serviço do fazendeiro ou chefe político, que se convertia, em contrapartida, naquela figura tão decisivamente responsável pela conservação do caráter endêmico de que o cangaço sempre desfrutou no Nordeste, que foi o coiteiro. Sobre o relacionamento — muito mais convergente que divergente — do cangaceiro com o proprietário rural, é interessante assinalar uma outra opinião de Graciliano Ramos, contida em seu livro Viventes das Alagoas. Com a autoridade de ter sido ele próprio, durante largos anos, um ativo vivente de uma Alagoas que era chão e tempo de cangaço, sustenta Graciliano que a aliança mostrava-se “vantajosa às duas partes: ganhavam os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na caatinga, e ganhavam os proprietários, que se fortaleciam, engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso”.2 Deve restar bem claro que o relacionamento não produzia vínculo de subordinação exclusiva para qualquer das partes. A característica principal do cangaceiro, vale dizer, o traço que o faz único em meio aos demais tipos já aqui analisados, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligado a fazendeiros, por força de alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia compromissos que pudessem tolher-lhe a liberdade. A convivência entre eles fazia-se de igual para igual, agindo o cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das prerrogativas que lhe eram conferidas pelo poder das armas, sem dúvida o mais indiscutível dos poderes. Houve cangaços dentro do cangaço — convém timbrar aqui. Em nosso estudo Aspectos do banditismo rural nordestino, publicado pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais em 1974, tivemos oportunidade de identificar modalidades criminais bem distintas, abrigadas sob o rótulo indiferenciado de cangaço.3 Com base no que já havia sido sentido e acusado de forma não sistemática por autores como Câmara Cascudo, Irineu Pinheiro, Coriolano de Medeiros, Gustavo Barroso, Ariano Suassuna e, principalmente, Xavier de Oliveira,4 foi possível isolar, dentro do quadro geral do cangaço nordestino, formas básicas perfeitamente caracterizadas, com traços peculiares inconfundíveis, capazes de atribuir colorido próprio exclusivo e fácil distinção entre si. Os que conhecem, ainda que superficialmente, a história do nosso banditismo rural sabem que a existência criminal desenvolvida por um Lampião, por exemplo, não pode ou, ao menos, não deve ser confundida com aquela levada a efeito por um Sinhô Pereira ou um Jesuíno Brilhante. No campo subjetivo, diferiam as motivações, os interesses, as aspirações, como diferiam os gestos, as limitações e as atitudes, no plano objetivo. Diversos foram os fatores que condicionaram a adoção do viver pelas armas em cada modalidade, como diversa se mostraria sempre a medida da conduta no respeito a certos valores, no comedimento das ações e na própria violência empregada. São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio, tais como as intitulamos no estudo citado. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas, como dissemos no trabalho mencionado.
Lampião. Foto: Lauro Cabral de Oliveira, cortesia de Raul Fernandes, Natal, Rio Grande do Norte Se deixarmos de lado já agora as distinções — a serem estudadas com rigor ao longo do capítulo seguinte — fixando-nos na acepção de abrangência mais ampla da palavra cangaço, acepção que traduz apenas as linhas essenciais do fenômeno, tais como, o seu caráter grupal, a sua ambiência rural e o seu traço marcante da não subordinação a patrões ou chefes situados fora do bando, veremos que essa forma criminal conhece tradição bem antiga, sendo mesmo uma das mais antigas dentre todas as modalidades que floresceram e, em alguns casos, ainda florescem na região, especialmente em sua área seca. Aprendida do índio, ao longo das primeiras escaramuças com que o colonizador português procurou firmar sua presença no solo que lhe cumpria conquistar, a guerrilha — essa mimética e eficientíssima forma de guerra sem cerimônias ou protocolos, de estonteantes avanços e recuos, emboscadas e negaças — cedo se poria a serviço do próprio colonizador, tanto se prestando a causas nobres, como a da Restauração Pernambucana de 1654, por exemplo, como a alimentar a técnica criminal trazida do Velho Mundo por alguns dos primeiros povoadores, em parte — como se sabe — sentenciados remetidos aos novos domínios pela Coroa portuguesa. Com efeito, a necessidade de sustentar combates numa terra de topografia frequentemente irregular, coberta de vegetação de densidade variável mas de presença contínua, exuberante nas matas, nos canaviais e nos mangues das areias e do massapê litorâneos, encapoeirada e espinhosa nas faixas agrestadas ou propriamente sertanejas, terras às quais mostravam-se estranhos os grandes espaços abertos à europeia, responsáveis pela formação de toda uma doutrina militar clássica, impôs ao colonizador uma atitude de humilde atenção para com os modos de guerrear dos nativos. E ainda que tais modos parecessem, a princípio, pouco dignos a olhos reinóis, porque baseados em procedimentos traiçoeiros, à luz dos quais a emboscada e o assalto revelavam-se procedimentos recomendáveis, e o movimento de retirada, longe de merecer censuras, impunha-se sobre avanços temerários e mesmo sobre entrincheiramentos pouco práticos, vão sendo assimilados e desenvolvidos empiricamente por um imperativo de respeito à ecologia da terra por conquistar. Crescentemente, vai-se produzindo a assimilação de técnicas militares indígenas pela gente luso-brasileira, a ponto de, no século XVII, já ser comum a essa gente “a consciência de uma arte ou estilo militar próprio do Brasil e melhor adaptado às suas condições do que qualquer outro”.5 Os movimentos de resistência ao holandês invasor, muito particularmente os que se desenvolvem após 1644, assistem à vitória sobre os padrões europeus da chamada guerra brasílica, ou guerra do mato, que nada mais era que uma guerra volante em que a espingarda de pedernal preferia aos mosquetes e arcabuzes de mecha facilmente inutilizados pela chuva e de difícil emprego nos assaltos; onde o desprestígio das europeíssimas praças-fortes resultava da convicção de que não há lugar mais protegido do que o mato; onde a estrepitosa cavalaria cedia lugar ao cauteloso caminhar a pé, e onde, finalmente, os valores tradicionais da ética militar, como a bravura, a lealdade e a honradez, viam-se substituídos pela mais completa velhacaria. Num ponto, em especial, as lições indígenas mostraram-se preciosas, para além dos aspectos do viver e do guerrear ecológicos que comentamos. Trata-se da fundamentalíssima arte de rastejar no mato os passos e vestígios de qualquer natureza da passagem do inimigo. Numa pedra mal rolada, galho deslocado, folha levemente acamada ou de colorido esmaecido, e não só na impressão de marcas plantares, os rastejadores iam buscar todo um roteiro de descoberta do inimigo, fornecendo ainda aos perseguidores informações adicionais às vezes sofisticadas, como a disposição física dos marchadores, se iam lépidos ou estropiados, leves de peso ou carregados, se levavam feridos, se estavam sóbrios ou haviam feito uso do álcool, sutilezas nada desprezíveis na urdidura de planos de ataque ativos ou de emboscada. Nas suas Memórias diárias da guerra do Brasil, Duarte de Albuquerque Coelho fala com entusiasmo do “capitão índio João de Almeida”, por demonstrar este “filho da terra” notável habilidade em “descobrir e assegurar os caminhos”. Também a um outro memorialista das guerras com os holandeses, frei Manuel Calado do Salvador, não passaria despercebida a importância da contribuição militar do rastejador. Ele refere um certo capitão Francisco Ramos, índio ou mameluco, assinalando tratar-se de “um dos mais espertos homens em diligência que há no Estado do Brasil, para tomar o rastro e descobrir emboscadas e andar por entre os matos e de ânimo e valor para qualquer perigosa facção, e sobretudo grande espingardeiro e mui certo no atirar”.6 Quase três séculos depois, este rastejador estará presente nas campanhas de repressão ao cangaceirismo como uma espécie de periscópio de que dependiam as volantes a cada passo. Ranulpho Prata nos dá um retrato muito vivo de seu papel e de sua condição nos primeiros anos da década de 1930. Vale a pena, num parêntese ao assunto geral que estamos comentando, reproduzir-lhe o depoimento autorizado de sertanejo contemporâneo dos fatos que narra e com os quais nos fornece um perfil irretocável dessa figura fundamental para a compreensão da arte guerreira de cangaceiros e de macacos, seus perseguidores: Ganha quatro mil-réis diários e, à testa das volantes, que se lhe entregam de corpo e alma, numa cega confiança à proverbial lealdade sertaneja, ele as conduz meses a fio em marchas incessantes pelo deserto. O bom ou mau êxito das batidas depende dele, exclusivamente. É tudo na coluna porque é a visão, maior do que o cérebro, no sertão ínvio. Detém-se, de repente, em lugar onde a vegetação rala e o solo entorroado e pedrento nada evidenciam a olhos vulgares. Esbarra, acocora-se, examina com simples toque de dedo grosso, seixos e cascalhos, “assunta” de mão no queixo, “magina” minutos, e, volvendo a face tostada de sóis, onde chispam olhos vivazes, conta ao tenente, em fala remorada, o seu achado, apontando, com segurança inabalável, a pista do bando. Segue-a a tropa pressurosa, com o batedor à frente, “escanchado” no rastro. Sem perdê-la, trazendo-a sempre debaixo dos olhos atentos, a marcha se estira por dias e semanas, até que as feras humanas, acuadas longe, ofereçam combate, negaceiem e escapem em fuga precípite. Recomeça novo trabalho de pesquisa de rumo, descobrimento de novo rastro, seguindo-se a caminhada exaustiva que tem como remate escaramuça quase sempre descompensadora. Não é adivinho nem mágico, porém, o matuto privilegiado. Ele enxerga “realmente” vestígios, baseia-se, nas suas afirmativas, em indícios tangíveis, concretizados em pequena folha machucada, cinza de cigarro ou borralho, um fósforo, toiças de capim acamado, pegadas de levíssimo desenho. O mais é ilação, agudeza, experiência de gerações, trabalho de inteligência vivacíssima e o que eles chamam o “dom”. Ao debruçar-se sobre um rastro diz se é fresco, isto é, recente ou se velho, de dias, e de quantos dias. Pormenoriza estupendamente, adiantando se após o grupo passou gente que lhe é estranha, e dissociando os sexos. E não é só pegada humana que o batedor descobre e segue. Rasteja todos os animais, avantajando-se, muita vez, aos próprios cães, dando, muito antes deles, com o rastro da caça que lhes atrita no focinho para avivar-lhes o olfato. Segue os pequenos animais, o preá, de pata minúscula, o teiú, que mal acama a vegetação sob o seu peso leve, o tatu-bola, todo delicadeza, a pisar o chão com sutileza de quem traz veludo nos pés. As próprias abelhas são “rastejadas” nos ares, seguidas no seu pesado voejo, mato adentro, até os troncos onde têm as suas “casas”. Para neutralizar, porém, a ação do rastejador, os bandidos contrapõem artimanhas e ardis. Com o fito de o desnortear, passam a andar trechos e trechos de caminho a um de fundo, todos a pisarem cuidadosamente a mesma pegada, simulando um só viajor. Invertem as alpercatas, ficando os calcanhares para a frente, produzindo atrapalhação de rumo. Quando sentem a tropa perto, pega não pega, trepam nas cercas e a firmarem-se como equilibristas desengonçados, varam quilômetros e quilômetros, suspensos do solo, onde não ficarão vestígios delatores. Vezes outras, em estradas largas, um deles desloca-se do grupo, e armado de espesso e folhudo galho de árvores, segue-o à distância, apagando sinais da marcha, “baraiando” o rastro.7 Não esquecer também que essa forma especial de guerra “oferecia a única maneira de utilização militar da camada mais ínfima e economicamente marginalizada da população local, mestiços ociosos, malfeitores, foragidos da justiça d’El-Rei, inábeis para a disciplina das guarnições como antes já se tinham revelado refratários à rotina dos engenhos”.8 Eis aí a eficiente escola militar informal em que se graduariam tanto o heroico “capitão de emboscadas” da guerra contra os holandeses, responsável, muito mais do que o soldado do Reino e mesmo o veterano de Flandres, pelo terror da gente batava, quanto o “facinoroso” e “desprezível” chefe de bandidos, o cangaceiro avant la lettre. Nas mãos de um e outro, a sabedoria comum representada pela assimilação e pelo aperfeiçoamento de um ecológico modo de brigar indígena, ao qual se juntariam seletivamente alguns dos modernos artefatos e processos militares europeus para a consolidação de uma ainda tão pouco teorizada arte militar brasileira, que irá mostrar-se aplicável, mutatis mutandis, com a mesma eficiência diabólica, em trópicos de ecologia bem diversificada, no úmido da guerra contra o holandês, tanto quanto no seco das lutas de Canudos, mais de dois séculos depois, quando a gente de Antônio Conselheiro novamente ensinará ao nosso soldado que aqui não se combate à europeia. Descrevendo os primeiros tempos da capitania de Duarte Coelho, Oliveira Lima refere várias vezes a insegurança que a caracterizava, pela irrefreada atuação de criminosos em correrias sem fim. No século XVII, ainda mais intensa revela-se a ação de “salteadores” e “bandidos”, segundo palavras do mesmo cronista.9 Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreender o nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores das tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivo que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. E não ficamos nisso, apenas. Houve mesmo chefes de grupo que eram holandeses. Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda, de um certo Hans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta do ano 1641. Três anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência a um outro chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmente holandês.10 Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, “batedores de bosque”, da designação holandesa do século XVII.
Na esteira das depredações na Bahia, a melhor revista nacional à época coloca Lampião na capa, em maio de 1931, valendo-se de fotografia de cinco anos antes. Foto de Lauro Cabral de Oliveira. Foto: Cortesia, arquivo Nirez, Fortaleza, Ceará O século XVIII não fugiria à tendência até aqui vista, mostrando-se pródigos os registros históricos no que diz respeito ao assinalamento de violências cometidas por bandidos. Não esquecer que foi na segunda metade desse século que o bandoleiro pernambucano José Gomes, o célebre Cabeleira, desenvolveu sua atividade, tão rica em peripécias que viria a fazer dele o primeiro desses campeadores a ser perpetuado pela literatura erudita da região e não apenas pela popular, campo este último em que sua presença legendária vem atravessando séculos, em versos como o pernambucaníssimo: Fecha a porta, gente Cabeleira aí vem Matando mulheres Meninos também Ou as seguintes formas variantes, igualmente populares: Feche a porta, gente Cabeleira aí vem Fujam todos dele Que alma não tem Fecha a porta, gente Fecha bem com o pau Ao depois não digam Cabeleira é mau Corram, minha gente Cabeleira aí vem Ele não vem só Vem seu pai também11 No século XIX, presentes os mesmos fatores e condicionamentos, assiste-se ao mesmo panorama de insegurança do século anterior, mas com uma novidade: o sertão, que já se acha à época razoavelmente povoado, embora dispondo de uma economia pecuária apenas incipiente, além de envolvida em luta tenaz contra processo de decadência prematura cujos primeiros sinais datam de fins do século XVIII, começa a se converter no cenário por excelência do banditismo, até porque, no litoral, a colonização florescia em todos os sentidos, permitindo uma repressão mais eficaz como fruto da estruturação social que crescentemente se aperfeiçoava. É evidente que com o deslocamento do foco central do banditismo para o sertão, onde aliás ele viria a receber o batismo de “cangaço” ou “cangaceirismo”,12 não desapareceria o banditismo litorâneo. O que se quer dizer é que, a partir da primeira metade do século XIX, as evidências históricas demonstram que essa forma de criminalidade passa a se desenvolver no sertão em ritmo idêntico ao da sua decadência no litoral. E mais: no sertão viria o cangaço a se requintar notavelmente, tanto sob o aspecto quantitativo quanto sob o qualitativo, pelo aporte de uma rica tradição de violência, muito própria — como vimos — do ciclo do gado, de que este sertão não foi apenas cenário, mas condicionante ecológico-cultural decisivo. Fornecendo ao banditismo um nome próprio de sabor regional, um tipo de homem vocacionado à aventura, um meio físico de relevo adequado à ocultação, coberto por malha vegetal quase impenetrável, e uma cultura francamente receptiva à violência, o sertão não poderia deixar de se converter no palco principal do cangaço.13 Principal, mas não exclusivo, havendo algum exagero nas palavras de Graciliano Ramos quando diz do cangaço ser “fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no Nordeste”.14 A nosso ver, mais certo anda Gustavo Barroso, para quem “não somente nessas zonas sertanejas existem cangaceiros”. Barroso amplia ainda mais a sua concepção ao sustentar que “os bandidos não são produtos exclusivos das terras brasileiras do Nordeste”, isto porque “em todos os povos têm existido com denominações diversas”.15 Também a Câmara Cascudo essa uniformidade universal do banditismo não passou despercebida, entendendo ele que “o cangaceiro não é um elemento do sertão” e sim uma figura que “existe em todos os países e regiões mais diversas”.16 Entre os estudiosos estrangeiros que se ocuparam do banditismo rural de suas e de outras terras, poderíamos apontar, filiado a essa linha universalista, o italiano de uma Itália tão fortemente contaminada em sua época pelo banditismo, que foi Garofalo, autor do clássico Criminologia.17 A esses registros já históricos de Garofalo, de Barroso e de Cascudo, datados, respectivamente, de 1891, 1917 e 1934, veio juntar-se, nos dias correntes, o de Hobsbawn que, em seu livro Bandidos, lançado em 1969, reafirma a tese da universalidade. “Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo islâmico, na Ásia meridional e oriental, e até na Austrália”, diz Hobsbawn, com base em amplo estudo comparado.18 Não somente a realidade do fenômeno se mostra assim abrangentemente universal em suas características estruturais: o mito que sobre este vai-se formando, em decorrência do adensamento da gesta que envolve o nome dos mais bem-sucedidos capitães, parece ser o resultado de processo igualmente invariável e universal, e que visto sob ângulo particularizado, com base no estudo do caso nordestino, apresenta duas facetas tão curiosas quanto frequentes: a de seu surgimento ainda em vida da personagem celebrada — não raro isto se dá muito cedo na carreira do bandido — e a da sua permanência e mesmo crescimento após a morte dessa personagem. Não havendo, após isto, novas façanhas a comentar, a permanência faz-se muitas vezes às custas de um desprezo cada vez maior pelos temas deste mundo, em benefício do sobrenatural, em cujos domínios o cangaceiro desaparecido passa a conviver sem-cerimoniosamente com os residentes do céu e do inferno.19 A despeito do que há de exato na fixação desse caráter universal — e, portanto, nem originária nem exclusivamente sertanejo ou nordestino ou brasileiro — do cangaceirismo e do processo de mitificação que parece acompanhá-lo invariavelmente, convém não esquecer o enorme papel do nosso sertão, com todas as contradições e peculiaridades da cultura pastoril, na formação da imagem que temos hoje do fenômeno cangaço. A imagem que ficou, e se conserva de modo mais generalizado em nossos dias, é cronologicamente a última. É a da década de 1920, com seu auge: 1926. Esta é a imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, do parabelo, da bala de aço furando pé-de-pau e exigindo trincheira de pedra, do bando de 150 homens, do ataque a cidade de luz elétrica, das primeiras páginas quase diárias dos jornais, da orgia — até financeira — dos trovadores populares, da frequência às conversas do Catete e do Monroe, dos três, dos cinco, dos sete Estados da Federação. Aqui, sim, está-se diante de um cangaço tipicamente sertanejo e talvez a este e só a este tenha-se referido Graciliano Ramos quando disse ser fenômeno próprio da nossa zona pastoril. No Nordeste, com esse volume todo, de fato foi. Mas pelo volume, não pela forma, fique sempre claro. Do casamento de modalidade criminal de si mesma rica em violência — como é o caso do cangaço — com ambiente natural e social profundamente predisposto a esta — caso da área sertaneja do Nordeste — resultaria o surgimento, a partir do meado do século XIX, de um banditismo rural cada vez mais desenfreado, findando por levar a região a clima que beirava o socialmente convulso, nas duas últimas décadas daquele século, e que foi capaz de produzir, na primeira metade do seguinte, sagas criminais de dimensões nunca vistas em qualquer outro período anterior da história do Nordeste, como as de Antônio Silvino e principalmente a de Lampião.
Cartaz distribuído no governo Frederico Costa, da Bahia, no meado de 1930, em vias de ser apeado pelo movimento revolucionário. Em 1938, morto Lampião, o tenente Bezerra receberá esses 50 contos de réis, em Salvador — valor de 10 automóveis novos — e mais outro tanto no Rio de Janeiro, da Perfumaria Lopes. Recuperação de imagem por Sandra Rodrigues Convém particularizar melhor o assunto, o que faremos através da indicação de dois momentos máximos de recrudescimento do cangaço, selecionados a partir dos vários registros que compõem a história do fenômeno no Nordeste, na qual ele figura quase ininterruptamente como ocorrência de sentido crônico em largas áreas da região, desde as primeiras etapas do esforço colonizador. Embora as indicações impliquem sempre em algum subjetivismo indesejável, cremos não se mostrar historicamente temerário apontar o ciclo da grande seca “dos dois setes”, no século XIX, e a já referida década de 1920, no passado, como dois momentos nos quais o paroxismo da ação desenvolvida pelos grupos em armas faz com que a habitual cronicidade do cangaço se aqueça até o ponto de ceder lugar à instalação de quadro agudo, muito próximo de uma convulsão social generalizada. A importância de que se assinalem esses dois momentos, nos quais o fenômeno evolui do ordinário-endêmico para o extraordinário-epidêmico, está no fato de ter sido sempre possível à sociedade sertaneja — e dela não excluímos aqui o componente representado pelo poder público — conviver, sem maiores traumas, ou, ao menos, sem traumas insuportáveis, com o cangaço. Não custa relembrar que a sociedade surgida da pata do boi, da luta permanente contra o meio hostil e da afirmação cruenta sobre os primitivos habitantes era uma sociedade violenta, que vivia sob a égide do épico, naquela atmosfera “admirável nos seus efeitos dramáticos” a que se referiu Caio Prado Júnior ao comentar precisamente o tipo humano da pecuária setentrional no Brasil.20 Ninguém mais que o cangaceiro encarnou esse épico tão querido, dando-lhe vida ante os olhos extasiados do sertanejo. Por força disso, ajusta-se perfeitamente à realidade uma representação da sociedade pastoril do Nordeste em que o contingente populacional se mostre dividido entre os que apenas convivem bem com o cangaceiro e os que — como geralmente se dava com os jovens — chegam francamente a admirar-lhe os feitos guerreiros. A palavra à idoneidade do poeta sertanejo Francisco das Chagas Batista, contemporâneo e biógrafo de um grande do cangaço como Antônio Silvino, para retratar com fidelidade o ambiente sertanejo e neste, a imagem social do cangaceiro: Ali se aprecia muito Um cantador, um vaqueiro Um amansador de poldro Que seja bom catingueiro Um homem que mata onça Ou então um cangaceiro21 Os surtos de cangaço epidêmico, em cuja etiologia acham-se sempre presentes fatores de desorganização social e de consequente inibição das atividades repressoras, tais como, revoluções, disputas locais, agitações de fundo místico ou político ou social, lutas de família e principalmente as prolongadas estiagens, provocavam o rompimento do equilíbrio que permitia à sociedade sertaneja viver, produzir e continuar crescendo lado a lado com o cangaceiro, com base em compromisso tácito de coexistência. Falando inicialmente de um tempo de cangaço apenas endêmico, em que “cangaceiros bonachões preguiçavam”, mandando aqui e acolá emissário que “chegava à propriedade e recebia do senhor uma contribuição módica”, Graciliano Ramos, em artigo contemporâneo ao segundo dos momentos epidêmicos aqui analisados, assinala que “tudo agora mudou”, denunciando em seguida que “os bandos de criminosos, que no princípio do século se compunham de oito ou dez pessoas, cresceram e multiplicaram-se” e que “já alguns chegaram a ter duzentos homens”. E ele próprio conclui que, em consequência disso, “as relações entre fazendeiros e bandidos não poderiam ser hoje fáceis e amáveis como eram”.22 Nada de diverso se passou durante o outro apogeu mencionado, o que corresponde ao período da seca de 1877-79, em que também se rompe o especialíssimo compromisso de coexistência que ligava o sertanejo ao cangaceiro, por força de uma admiração mal-disfarçada pela liberdade selvagem que este último encarnava e que lhe permitia materializar, no aqui e no agora do cotidiano, o conteúdo talvez mais forte do arquétipo mental do sertanejo do Nordeste: o individualismo arrogante, aventureiro e épico, plantado ali nos primeiros momentos da colonização e conservado sem contraste, ao longo de séculos, pela ausência de contaminação externa que o isolamento sertanejo proporcionou. Mas nada disso importa agora. Com o rompimento do compromisso, impõe-se ao sertanejo denunciar o cangaceiro mais próximo, o que passa em sua porta, malsinar o cangaço em geral, protestar, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para obter a restauração de um clima que, se não chegava a ser jamais de inteira e completa segurança individual e da propriedade, era ao menos tolerável, no relativismo das garantias oficiais deficientes, sob cujo império mambembe sempre viveu o sertão. A seca de 1877-79, talvez a maior de todos os tempos, representa momento bem eloquente no demonstrar esse jogo de substituição momentânea do banditismo endêmico pelo epidêmico mais desabrido, a suscitar empenhos de governo igualmente especiais, em consequência do alarido do povo, multiplicado pela imprensa. Na fala com que encerrou a primeira sessão e abriu a segunda, da legislatura da Assembleia Geral do Brasil do ano de 1879, lamentava o Imperador a quebra “em alguns lugares” da “segurança individual e da propriedade”. “Às causas notórias — dizia ele aos parlamentares — por mais de uma vez trazidas ao vosso conhecimento, acresceram outras provenientes da calamidade da seca e consequente mudança da condição e hábitos da população. O governo empenha-se em combater essas causas e acredita que cessando os efeitos daquele flagelo e mediante a enérgica repressão ao crime, seja mantida a segurança individual e respeitada a propriedade”.23 Na superposição das causas extraordinárias oriundas da seca, e como tal transitórias, àquelas de caráter ordinário e crônico — “causas notórias”, segundo as imperiais palavras — contém-se toda a estrutura da criminalidade rural tornada epidêmica. A história nos mostra que esse beijo trágico une condições socioculturais básicas a uma causalidade episódica deflagradora. À fixidez das primeiras, opondo-se à mutabilidade da segunda, que tanto pode ser uma seca como uma agitação política ou qualquer outra convulsão socialmente traumática responsável pelo afrouxamento das estruturas sociais e consequente inibição do aparelho repressor. Não esquecer o importante indicador representado pela quebra nesses momentos do compromisso tácito de coexistência entre o homem do sertão e o cangaceiro, capaz de eclipsar a admiração daquele por este e de, em decorrência, decretar uma perigosa — para os cangaceiros, já se vê — suspensão de determinadas atitudes comissivas ou omissivas com as quais o sertanejo exercia uma espécie de militância tácita e difusa em favor do cangaço endêmico, vale dizer, do cangaço moderado e tolerável dos tempos normais. Citando Bournet, autor do La criminalité en Corse, de 1887, afiança Garofalo que “na Córsega, a criminalidade endêmica, uma ou outra vez comprimida por uma forte repressão, ressurge sempre que esta afrouxa”.24 Como entender essa realidade irmã gêmea da nossa e de tantas outras que vimos acima senão pela admissibilidade de uma colaboração popular ao banditismo, representada ao menos por uma conduta omissiva? Ainda assim, pareceu-nos bem clara a ideia de que antes de demonstrarmos a quebra, por ocasião dos surtos epidêmicos, do especialíssimo compromisso que unia o homem pecuário do Nordeste ao cangaceiro, cumpria-nos evidenciar ao menos alguns aspectos dessa mais que complexa aliança, além de, como é natural, demonstrar a sua própria existência. Aliás não é outra coisa o que vimos fazendo nestas últimas páginas: mostrar o quanto o cangaceiro realizava os valores de uma sociedade peculiar em muitos de seus aspectos, abafada pelo isolamento, agredida por todo um conjunto de fatores naturais e sociais hostis, além de inviabilizada crescentemente, sobretudo a partir de fins do século XVIII, por processo de decadência econômica que negava ao homem maiores oportunidades de ascensão pelas vias ditas normais ou legais, fornecendo ao mesmo tempo a esse homem uma via atapetada por inegável chancela cultural — que era o cangaço — através da qual ele poderia saciar os humaníssimos requerimentos de mando, prestígio, patrimônio e notoriedade, exercendo uma “profissão” cheia de aventuras, nada monótona, sedutora mesmo, pelo que nela é oportunidade de protagonizar o épico tão do gosto do sertanejo. Que as especificidades socioculturais sertanejas mostravam-se capazes de empurrar os temperamentos jovens e mais vibrantes na direção do cangaço, não temos qualquer dúvida. Mas daí a cair neste vai um passo, a ser dado pela predisposição psicológica. Porque havia sempre os recursos heroicos da resignação e da fuga, capítulo este último em que a maniçoba do Piauí, a seringueira do Amazonas e o industrialismo de São Paulo, ao menos no período que corresponde aos dois surtos epidêmicos de cangaço aqui comentados e em ordem de sucessão no tempo, desempenharam papel de não pouca expressão. Assim, parece-nos exagerado ver no cangaço o que a passionalidade de Manuel Bonfim o conduziu a ver: caminho “inevitável” e “único” para uma “população forte e a quem a ordem normal nenhuma possibilidade oferece de boa atividade social e política”.25 Certo na essência, ou seja, no caráter criminógeno da sociedade sertaneja por tantos de seus aspectos, o sergipano nos parece pouco sensato na dose. Os que conhecem os fatos históricos do cangaço e os a este vinculados diretamente, como os que resultam da reação oficial à sua existência, sabem não ser fácil encontrar registros diretos dessa colaboração dada pelo sertanejo ao bandido. Na boca da polícia tais registros sempre pareceram desculpa para os reiterados insucessos, o que não deixava, em algumas ocasiões, de ser verdade. Em todo caso, por basicamente suspeitos, não surgiram em profusão e, quando surgidos, não mereceram muita importância. Igual impedimento tocava aos políticos, só que por uma outra razão: a de não desagradar a um eleitorado que jamais poderia encarar racionalmente sua condição de colaborador, não o do tipo específico, o coiteiro — não é a este que nos estamos referindo aqui — mas o genérico, aquele que, espécie de coiteiro cultural do cangaço, fez da sociedade sertaneja toda ela uma sociedade coiteira, a justificar frase que ouvimos de velho e ilustre sertanejo que mascateara, ainda menino, no Pajeú de 1914, Gerson Maranhão, que insistia em afirmar que “naquela época, todo mundo era cangaceiro”. E explicava: “todo mundo tomava partido pelo cangaceiro”. (…) FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO possui formação em História e Direito, sendo procurador federal (aposentado). Na Fundação Joaquim Nabuco, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre, de 1972 a 1987, período em que se especializou, sob a orientação deste, no estudo da História Social do Nordeste do Brasil, com maior foco em seus conflitos. Publicado originalmente pela Revista Continente