sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


Jornal da Tarde (O estado e São Paulo) 31 de Julho de 1973

A História que nos perdoe. Mas por que não se conta de uma vez a verdade sobre o Cangaço?

Por: Claudio Bojunga

Dizer que Padim Ciço, um santo, fez Virgolino Ferreira um bandido é um sacrilégio. Mas o santo fez o bandido virar capitão, sim, embora historiadores do cangaço omitam esse episódio em seus livros. Há outras omissões. Embora os personagens da História ainda estejam dispostos a depor para a História. Por enquanto, porque estão todos muito velhos.

O coronel aposentado Higino José Belarmino, o homem que mais combates travou com Lampião e seu bando, durante a primeira fase do cangaço, até 1928, desistiu de ler qualquer livro, jornal ou revista que trate desse assunto. Tem dois motivos para isso. O primeiro é pessoal: até hoje, segundo ele, ninguém descreveu corretamente a morte dos dois irmãos de Virgulino Ferreira, Antônio e Livino, considerados por todos como mais violentos, ferozes e ousados do que o irmão. Prova é que morreram logo, em combates com o então tenente Higino.

cel. Higino José Belarmino
Foto: Josenildo Tenório

O segundo motivo – e o que mais irrita o coronel – é a sua obsessão pela minúcia. “Já perdi a conta dos doutores (escritores, jornalistas, sociólogos) que vieram aqui falar comigo. E esta é a segunda vez que trazem a maquininha (gravador)”. A maioria dos entrevistadores do coronel conversava horas – até dias – com ele, anotando um dado ou outro, geralmente datas. “Um negócio feito assim só pode sair torto”, diz ele. O coronel está alertando, com muita seriedade, todos os estudiosos do assunto.

A maioria dos livros históricos – que fique claro: a maioria – ou ensaios sobre cangaceirismo parte de premissas discutíveis (alguns até partem de preconceitos) ou escolhem, a esmo, um determinado ângulo do fenômeno. Então temos livros que, sem maiores explicações, rotulam Lampião de “revolucionário”, vestem-no de Robin Hood, tratam as volantes como “forças opressivas” e, no fundo, descrevem o velho lugar comum que leva o leitor a identificar o bandido como mocinho e vice-versa. Se a intenção é politica, esses escritores perdem, nos seus preconceitos, ótimos detalhes que até ajudariam a defesa de suas teses; que, por exemplo, os métodos usados pela polícia na luta, em nada, mas em nada mesmo, se diferenciam dos métodos dos cangaceiros.

Quando o coronel Higino diz que “eu era um boi”, fica claro sua identificação com os inimigos. A volante, enfim, seria um grupo de cangaceiros funcionários públicos. Igualmente ferozes e ingênuos. Outros pontos: não é possível pesquisar o cangaço sem o conhecimento profundo da República Velha, das condições socioeconômicas do Nordeste, na época, da psicologia do seu povo, das complicadíssimas árvores genealógicas, os clãs, os feudos, as pequeninas máfias. Como falar de cangaço sem o entendimento das relações estado-igreja-povo? A função dos beatos, o messianismo, o compadrismo político, tudo isso contribuindo direta e indiretamente para a formação dos bandos sanguinários, na verdade manuseados por uma série de elementos que vão desde o cínico senhor feudal às relações econômicas do Nordeste com o Centro-Sul. Há um exemplo edificante, de um homem que pesquisa o assunto há mais de vinte anos e ainda não escreveu o seu livro: o paulista Antônio Amaury C. Araújo.

O jovem Amaury
(Cortesia do mestre para ilustrar o artigo)




À medida que ele avança no conhecimento do cangaceirismo, mais dados lhe são exigidos. Talvez uma pesquisa dessas, que além de muita cultura e paciência, obriga a gastos inestimáveis de dinheiro, nunca venha a ser feita no Brasil. A solução poderia estar num trabalho de equipe, financiado por uma riquíssima instituição cultural. E alguém teria realmente interesse de esmiuçar tão obsessivamente um período regional da História do Brasil? É fácil concluir que um trabalho assim é impossível, mas não se pode perdoar a desonestidade (ou o despreparo, vá lá) de alguns autores. Como é possível perdoar um “historiador” que, pelo simples fato de venerar o Padre Cícero do Juazeiro, omita da sua “história do cangaço” o episódio da “promoção” de Virgulino Ferreira a “capitão”?

Alguns personagens desta página – todos da primeira fase do cangaço, a mais desconhecida, que vai de 1924 a 1928, quando Virgulino atravessou o rio são Francisco e foi brigar na Bahia – estão dispostos a testemunhar, depor. Ainda podem chegar à minúcia. Mas os historiadores bem intencionados devem se apressar: a média de idade dessa primeira fase está por volta dos oitenta anos.

A arteriosclerose começa a apagar a memória de muitos. A morte natural está bem próxima. E logo agora que se descobre que cangaceirismo está longe de ser um assunto esgotado pela História, como dão a entender os representantes do sensacionalismo escrito, falado, filmado e televisionado.

Créditos para Antônio Correa Sobrinho/Kiko Monteiro(Lampiao Aceso)

Nenhum comentário:

Postar um comentário