quarta-feira, 4 de janeiro de 2017







                    SEVERINA BRANCA: A POETISA DA EMBRIAGUÊZ

Mesmo fazendo versos sem ciência do termo “laudatório”, alguns poetas nordestinos cantam exaltando a vida, por vezes sofrida, de personagens do cotidiano sertanejo, como se a literatura já fosse inerente n’alma do vate. O poeta Gilmar Leite, natural do sertão de São José do Egito, cidadezinha pernambucana às margens do Rio Pajeú, em seus versos, canta uma louvação a uma prostituta que viveu na cidade nos idos de 70, chamada Severina Branca. No tempo em que as meretrizes eram muito pobres ou de pouca beleza, vendendo o corpo para alimentar seus filhos, muitas vezes de pais que não assumiram, e sem o amparo dos órgãos governamentais, Severina Branca foi a pioneira naquele recanto sertanejo de pouca fartura.
Na voz de Severina Branca, o poeta Gilmar Leite decanta a alma romântica do “eu oprimido”, esmagada pela solidão e pela brutalidade do mundo. Uma espessa melancolia se apossa dos seus versos, e por todos os lados vê-se o lado sombrio e inútil da existência. Ao sentir que os seus vínculos com o mundo foram rompidos, o poeta apega-se no próprio “eu”. Um “eu” incômodo, estranho, que ameaça ora com o caos, ora com o êxtase, ao mesmo tempo, um “eu” angustiado, incapaz de transformar o mundo. O poeta utiliza aspectos da literatura romântica com gritos de subjetividades que confessam seus medos e sofrimentos.
Gilmar Leite verseja a inconformidade do artista romântico com o “mundo cruel” com uma série de procedimentos de fuga, dando voz à Severina Branca, cujo silêncio da noite é a única testemunha daquela vida de muitos pecados. Já que a sociedade não quer escutá-la ou não sabe compreendê-la, já que ela está perdida numa realidade incômoda e brutal, já que sua sensibilidade não possui força para mudar o destino, resta-lhe apenas a tentativa de escapar dessa noite silenciosa, abrindo seu coração para as amarguras da vida.
Uma das características românticas é o “mal do século”, uma “enfermidade moral” e não física. Resulta do tédio (“ennui”, “spleen”), mas não do tédio comum (aborrecimento diante da chatice da vida). A concepção romântica aponta para um aborrecimento desolado e cínico, que ressalta tanto a falta de grandeza da existência cotidiana quanto o vazio dos corações sem esperanças. Estes acreditam ter vivido todas as paixões e ter experimentado todos os abismos. Severina Branca cria uma espécie de sentimento mórbido de insatisfação da vida e de manso desespero, com a alma machucada de torturas. Algo próximo à sensação de absurdo da vida, quando Severina roga a Deus para que sua vida seja levada, terminada aquele sofrimento agourado por aves estrigiformes de hábitos noturnos.
Em contraponto ao presente insatisfatório, o poeta encontra elementos românticos, constantemente no passado, com versos sublimes, delineando intelectualmente seus valores. Esta condição de mito, onde Severina Branca é ovacionada, obedece a uma tendência de fuga da realidade, pois, de acordo com os ideais românticos, tanto o mundo medieval como o mundo infantil representa o paraíso perdido, uma época de ouro na qual as criaturas seriam felizes. Pela nostalgia de um tempo que os artistas do Romantismo desconheciam - caso do passado histórico - nega-se o presente, hostil e causador de sofrimentos, conforme podemos ver na narrativa do poeta Gilmar Leite.
Na poesia romântica brasileira, há grande variedade métrica, de ritmos e de rimas, indicando a liberdade de composição que os autores experimentam. Gilmar leite começa a cantar as desventuras de Severina Branca usando um dístico, glosado e rimado em versos decassílabos. O poeta faz uso intenso de adjetivos, em função de sua força expressiva e de seu poder de qualificar uma numerosa gama de sentimentos expressos no peito de Severina. Os adjetivos, segundo os românticos, ampliam ao máximo a conotação emotiva das palavras, fixando tonalidades e nuanças da natureza e das paixões humanas.
A saudação aos heróis Dante e Virgílio, criando um vínculo divino entre o poeta e o legado dos antigos aedos, serve como guia para contar a história daquela mulher mitológica, que amargou as horas do ocaso, flamejadas nas manhãs do sertão de Pernambuco. Ao longo do poema, Gilmar Leite usa uma linguagem romântica, deixando a impressão de nobreza naquele sofrimento sem fim e dando ênfase declamatória à Severina Branca, através de metáforas, hipérboles, alegorias e outras figuras. De alguma maneira, o lirismo desse poeta pernambucano alcançou o grau laudatório dos grandes poetas românticos, conduzindo seus versos para o encantamento, revelado na voz de Severina Branca.
Observação de Gilmar Leite: O mote abaixo, que é o titulo do poema, foi feito pela poetisa/meretriz Severina Branca. Ele foi dado na década de 70, quando então cantavam em São José do Egito, na barbearia de Zé Rocha, os poetas repentistas Job Patriota e Zé Catota (ambos já falecido). Já descambando pra meia noite, a poetisa perambulando pelas ruas da cidade chega ao recinto da cantoria e fica assistindo aos vates em noite de inspiração. No momento do silêncio da viola, enquanto os cantadores tomavam um aperitivo, alguém presente na cantoria sugeriu que a poetisa desse um mote pra os bardos improvisarem. A poetisa/meretriz na sua angústia e dor disse o mote abaixo, que por si só é um poema. Os cantadores improvisaram; só que os versos se perderam entre as paredes daquela madrugada fria de outrora, sem haver nenhum registro do que foi feito sobre o mote da poetisa/meretriz. Ela depois fez alguns, que infelizmente se perderam na oralidade; e outros poetas também fizeram, abordando o tema. Eu nunca imaginei fazer um dia, pois pensava que o assunto já tinha se esgotado. Mas certa noite, eu fui tomado pela inspiração e fiz os decassílabos abaixo sobre o mote de Severina Branca. Hoje, Severina Branca reside num povoado distrito de São José do Egito chamado “Mundo Novo”. Nos dias de feira (sábado), antes dos primeiros goles de álcool a poetisa/meretriz ainda consegue dizer alguns versos de sua autoria.


O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras

Mergulhei nos abismos infernais
Que nem Dante deu passos com Virgilio
Na loucura de achar algum auxílio
Eu sofri nos subúrbios marginais.
Vi o ocaso nas horas matinais
Entre os braços de estranhas criaturas
Os contatos fortuitos às escuras
Ecoavam com um sopro dum gemido
“O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras”.

Troquei beijos com bocas amargosas
Sob as luzes de um velho candeeiro
E dos corpos senti estranho cheiro
Entre as sombras de noites vaporosas.
Hoje as marcas das dores horrorosas
São sinais dos momentos de loucuras
Machucando minh'alma com torturas
E deixando o meu ser enlouquecido
“O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras”.

Inda sinto o tremor da mão suja
Afagando o meu corpo pecador
Ao invés do prazer sentia dor
E no peito uma voz dizendo fuja.
Entre as brechas das telhas a coruja
Agourava as minhas desventuras
Eu gritava pra Deus lá nas alturas
Leve logo este ser que é tão sofrido
“O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras”.

Muitos homens chegavam embriagados
Dando chutes na porta como loucos
Os gentis para mim foram tão poucos
Eram seres tristonhos, reservados.
Eu perdi a noção dos meus pecados
A miséria causa-me tonturas
Numa vida com facas de agruras
Que cortavam meu peito ressequido
“O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras”.

Sobre a cama meu corpo se tremia
De fraqueza, de fome e de sede;
Noutro canto a filhinha numa rede
Quem olhasse pensava que dormia.
Pois a fome causava-lhe agonia
Lhe roubando fagulhas de venturas
Eram cenas cruéis de vidas duras
Condenadas num mundo corrompido
“O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras”.

Hoje eu vivo jogada ao relento
Sem um teto sequer para dormir
O passado, o presente e o porvir,
Me jogaram no duro calçamento
Condenada num frio isolamento
O meu corpo só tem as ossaturas
Pra os insetos fazerem aventuras
Ferroando o que já foi consumido
“O silencio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras

Por Alexandre Gurgel/Gilmar Leite.


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