Por: Julya Vasconcelos
Ainda na estrada, uma visão já entrega o espírito do lugar que se aproxima: vemos ao longe a fumaça grossa e cinza-escura que a Usina Catende, cravada entre casas coloridas, joga acima da pequena cidade de mesmo nome, situada na Zona da Mata Sul pernambucana, a 142 km do Recife. Depois, com o carro já passeando pelas ruas, subidas e descidas íngremes revelam uma cidade ladeiriça, que acumula em varandas e calçadas uma poeira preta de carvão. “Tão gostando do carvão de Catende? Tem que varrer o dia inteiro, de dez vezes pra mais”, diz uma moça de vestido e óculos, empunhando uma vassoura e jogando as cinzas pra fora de casa.
São apenas oito e meia da manhã e o sol já reflete forte nas muitas antenas parabólicas e no asfalto das ladeiras de Catende. “Pra onde a gente vai?”, pergunta Seu Edvaldo, nosso motorista. “Pro cemitério”, respondemos arrancando-lhe um olhar incrédulo e um meio sorriso, daqueles de quem estranha.
A verdade é que Catende guarda uma lenda urbana que habita o imaginário dos seus pouco mais de 38 mil habitantes e acabou virando bloco de Carnaval. Absolutamente todos conhecem a história da famosa fantasma loira que seduzia operários, levava-os até o cemitério e aterrorizava-os. “O doceiro disse que viu, não foi?”, conta um morador em meio aos protestos de outro: “Isso não existe não, é lenda!”. “E uma moça, no ano retrasado, contou pra um jornalista que viu uma mulher de sombrinha passando por detrás no bloco”, alguém fala em meio à conversa coletiva. Cada um que conte a sua versão ou saiba de alguém que viu, mas é quase impossível conseguir encontrar pessoalmente com essas testemunhas oculares. O doceiro havia morrido, a moça ninguém sabe quem é ao certo. Há também alguns que são famosos por dizerem haver visto a tal mulher, como Seu Mariano. Mas não há jornalista, rede de televisão ou jornal que o faça falar. Sua memória é guardada a sete chaves.
O primeiro registro dessa história é do ex-prefeito Renato Buarque de Macedo, que escreveu, nos anos 1940, sobre a aparição de uma mulher que assustou um ferreiro chamado José Leandro: “… lenda ou cousa que valha de uma certa visão que aparecia à noite no povoado, e que foi o terror dos notívagos e seresteiros, como ele José Leandro. Tratava-se de uma figura de mulher vestida de branco, cabelos soltos que, de preferência, andava na Rua do Craveiro, hoje 15 de novembro”.

O historiador catendense Eduardo Menezes conta também que os operários do último turno costumavam ficar nas imediações da Usina Catende, por volta da meia-noite, e que então uma loira esplendorosa, com uma sombrinha na mão e uma vestimenta do século 18, passava por eles. Eles acabavam indo atrás dela até o cemitério, completamente seduzidos. Alguns dizem que eles amanheciam o dia sozinhos em cima de uma lápide. Outros, que ela desaparecia diante dos olhos deles na frente do cemitério. E há ainda quem diga que ela não passava, na realidade, de uma mulher que escolhera um cenário pouco usual e acima de qualquer suspeita para trair o marido. Fantasma ou traidora, a Mulher da Sombrinha mexe com a imaginação da cidade e faz muitos foliões aguardarem ansiosos no portão do cemitério pela sua saída – no caso, do bloco que leva seu nome.
E TUDO VIRA CARNAVAL…
Em frente ao grande portão de entrada do cemitério, no sábado de manhã, Seu Lôti Boca de Ponche (apelido de Alberto da Silva Costa) bebe cachaça e se prepara com os amigos, “os papudinhos”, para a saída do bloco da Mulher da Sombrinha. “Somos os bêbados de Deus”, diz Seu Lôti soltando uma gargalhada e enxugando o suor do rosto. Conta, empolgado, que carregou a boneca gigante durante alguns anos. “Parei, porque era muito peso e pouco dinheiro”. Frevos misturados ressoam ao fundo, vindos de dentro dos bares e das casas das pessoas. Este foi um sábado anterior à semana pré-carnavalesca, mas a cidade já vive o clima de esbórnia. O curioso é que, arrematando todo o clima, os celulares passam o dia soando o hino do bloco – composto por Marcos Catende logo nos primeiros anos de existência da agremiação – e que vira o toque por excelência de quase todos os aparelhos dos catendenses.
Seu Lôti pede licença aos companheiros de farra e nos ciceroneia até o local, próximo ao cemitério, onde está guardada a boneca gigante. Em um canto de uma sala úmida de azulejos, a Mulher da Sombrinha espera pela meia-noite coberta por um pano vermelho, com a roupa de três anos atrás (todo ano a roupa nova é um segredo). Seu Lôti, com intimidade, tira o tecido e exclama: “Olha como ela é bonita!”. E nos revela uma boneca de pele, olhos e cabelos claros. Lábios cor-de-rosa, desenhados. Uma beleza europeia, bem distinta daquela das moças bonitas de pele queimada e cabelos escuros que passeiam pelas ruas de Catende.
Uma moto com dois homens acelera na nossa frente. Dela descem um homem de cabelo grisalho e um rapaz moreno-forte-sorridente. Eles são Seu Tomires Cordeiro e Nêgo Amaral. O primeiro é um dos fundadores do bloco e homenageado do Carnaval catendense de 2012; o segundo, o atual carregador da boneca. “Amo mais ela do que a minha mulher!”, diz numa gaitada. Mas os fios dessa história são unidos é por Seu Tomires: a usina, o fantasma, o Carnaval, o cemitério e um grupo de amigos adoradores da folia momesca.
Tudo começou quando Jorge Benjamim, cunhado de Tomires e dono da loja de móveis na qual ele trabalhava, teve que retirar a porta do estabelecimento durante uma reforma. Algum funcionário precisava, toda noite, dormir na loja. Na vez de Tomires, que morria de medo da lenda da mulher da sombrinha, ele pagou para Irmãozinho ficar em seu lugar. O medo de Tomires e a gozação incansável dos amigos acabaram por virar um improvável mote para a farra. Assim, em 1983, Tomires, Jorge Benjamim, Irmãozinho, Sílvio Romero Brito, Inácio Loyola e Bibiu criaram o excêntrico bloco da mulher-assombração; o bloco da Mulher da Sombrinha.
“Era só nós seis, um pistón, um surdo e um tarol”, conta Tomires. “Vê que coisa tão linda que era”, diz em meio a uma risada irônica. Juntando-se ao sexteto, a Mulher da Sombrinha era feita de um cabo de vassoura, um vestido de pano de colchão e um mamão no lugar da cabeça com uma vela acesa por dentro. O sorriso assustador era de palito de fósforos. “A gente ainda botava um cigarro e um bico. E os braços, então! A gente catava papel no meio da rua, enchia um meião de futebol e ia dando lapada no povo na rua”. Quem carregou a fantasma no primeiro ano foi o próprio Tomires, apesar do medo que tinha da lenda. “Botaram só meu nome numa bolsinha e pediram pra um menino na rua sortear. Só deu eu na cabeça”.
Hoje em dia, 29 anos depois, a Mulher da Sobrinha de Catende é Patrimônio Imaterial do Estado, e atrai cerca de 20 mil turistas para a cidade, fazendo a maior festa da Mata Sul de Pernambuco.
Ao sairmos da cidade, Seu Lôti já estava com o rosto coberto de argila, recitando poesias de amor. O frevo tocava mais alto, as fitas coloridas caiam dançantes na frente das casas e os carros começavam, devagar, a tomar a Av. Presidente Vargas, que os moradores insistem em chamar pelo antigo nome: o de Rua da Saudade.