terça-feira, 24 de março de 2020




GUERRA DA PEDRA DO
RODEADOR


Mais de 180 anos depois que o capitão-general Luís do Rego Barreto, derradeiro governador régio pernambucano, em nome da defesa da ordem monárquica e da religião, mandou sufocar barbaramente um ajuntamento de sem-terras fundado no Sítio da Pedra do Rodeador, em Bonito, município do Agreste pernambucano, a 135 km da capital, pouco se escreveu sobre esse episódio considerado o primeiro movimento sebastianista do País.


Os camponeses do Rodeador criam que com o retorno de D. Sebastião, soberano português morto nos areais marroquinos de Alcácer Quibir, em 1578, em luta contra os filhos de Maomé, uma nova era de felicidade seria inaugurada, e eles, os eleitos, seriam agraciados com a posse da terra, vivendo em um reino repleto de felicidade. No período em que surgiu o ajuntamento, Pernambuco mal havia se livrado dos ferretes provenientes do movimento rebelde de 6 de março de 1817. Por isso, pensou-se que ali se maquinava contra a Coroa e se fomentava uma contra-revolução.
O ajuntamento foi organizado nas terras da sesmaria do Rodeador, de propriedade de João Francisco da Silva, por um desertor das milícias locais, Silvestre José dos Santos, que vinha corrido de Alagoas por professar naquela província a crença sebastianista.


Ao chegar em Bonito entre os anos de 1811 e 1812, em companhia do cunhado Manoel Gomes das Virgens, também um desertor, Silvestre fez alguns acertos verbais com o proprietário daquelas terras para o uso da mesma. Com a chegada da parentela e de outras pessoas que para ali foram atraídas por histórias de riquezas, resolveram ampliar os negócios, originando um arraial que foi designado de Reino ou Cidade do Paraíso Terreal. O acampamento contava com cerca de 150 casebres, todos construídos de palha, cobertos com palhas de catolé. Os habitantes daquele reino sonharam que com o retorno de D. Sebastião a ordem seria invertida: os pobres enriqueceriam; alguns dos líderes da comunidade se transformariam em príncipes, aumentando a fortuna do lugar; o abominável sistema de recrutamento seria abolido; o sepultamento de ricos nas igrejas deixaria de acontecer; os pobres conquistariam a terra, quando, então, um dia, aquele povo sairia dali para comandar o mundo e corrigir as coisas erradas.


Tratando-se por irmãos, os prosélitos se agrupavam em torno de uma irmandade, a do Bom Jesus da Lapa, cujos principais líderes eram Silvestre e seu cunhado Manoel Gomes das Virgens, tidos como Procuradores de Cristo. Abaixo deles, doze indivíduos denominados “sabidos” tinham grande influência nos atos religiosos. O restante do povo era conhecido como “ensinados”. Estes, quando chegassem a mil deveriam marchar daquele sítio numa grande cruzada para libertar os lugares santos de Jerusalém e promover a conversão dos infiéis. Até o rei D. João VI seria ouvido, e caso não se convertesse, haveria guerra entre os dois reis. O local mais representativo para aquele povo era a grande serra, dita Pedra do Rodeador. Em uma de suas encostas, existem algumas cavidades, espécies de abrigos naturais, onde, segundo eles, ouviam-se vozes humanas, manejos de armas, instrumentos tocando. Eis o motivo por que o local era conhecido por “Lugar do Encanto”. Dali sairia D. Sebastião comandando um fabuloso exército para libertá-los da opressão e defendê-los do mal. A imagem de um poderoso exército alimentou os ânimos. Foi um dos fermentos que uniu o grupo e o fez enfrentar as forças comandadas por Luís do Rego na noite de 25 para 26 de outubro de 1820, quando foram rechaçadas.


Rituais sagrados, controles profanos - Entre a irmandade do Bom Jesus da Lapa, foram distribuídas diversas condecorações de fitas coloridas, cada uma possuindo simbologia própria. A encarnada representava a guerra a quem se opunha às leis de D. Sebastião; a azul simbolizava a paz aos que sob aquela lei viviam; a preta representava o dó, o luto e o sentimento; a verde, a esperança dos bens que D. Sebastião iria distribuir aos eleitos no momento de seu retorno. Nos ritos de condecoração dos eleitos, muitas mulheres tinham papel de destaque, fato inédito, pois isso não foi verificado nem na vida profana, muito menos na hierarquia eclesiástica de então. O Reino do Paraíso Terreal era um local como tantos outros.



E, como todos os locais, havia de ter os caminhos do sagrado e do profano. Para coibir os desregramentos, as seduções e os prazeres, comportava a estrutura da comunidade um grupo de procuradores da honestidade masculina e feminina, cujos dignitários se distinguiam do povo por ostentar divisas e rosetas multicores. Suas funções eram velar pelos vestuários e proibir uniões que maculassem a religião. Para a segurança daquele reino, havia um pequeno exército composto de 150 homens, em sua maioria desertores dos exércitos reais, comandados pelo sapateiro Gonçalo Correia. Todo esse efetivo dispunha de armas das mais variadas qualidades: facas-de-ponta, pistolas, espadas, catanas, parnaíbas, bacamartes e espingardas, sendo essas duas últimas as mais expressivas. As revistas das tropas e exercícios militares, ou “Marchas de Deus”, davam-se à noite após o término dos “Santos Louvores”.


O governo provincial, com a anuência da Coroa, mobilizou várias tropas para aniquilar o arraial sebástico. A comunidade começou a ser atacada na madrugada do dia 26 de outubro de 1820. A falta de prudência no manejo das operações de guerra concorreu para que houvesse grandes perdas de vidas entre os camponeses e soldados. Na manhã daquele dia, grande quantidade de feridos e de mortos foi amontoada e incendiada formando uma imensa fogueira. Tais imagens inspirariam o príncipe D. Pedro, futuro Imperador do Brasil, ao enfatizá-las em um manifesto de 1º de agosto de 1822 dirigido à nação, quando se expressou: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras do Bonito”.


Escrito por Flavio José Gomes Cabral

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