quarta-feira, 28 de julho de 2021

A CABEÇA DE LAMPIÃO

Crônica Feira de Cabeças De Aurélio Buarque de Holanda (*) A Carlos Domingos
Aurélio Buarque de Holanda IN: http://majellablog.blogspot.com.br/2010/05/mestre-aurelio-na-sua-biblioteca.html De latas de querosene mãos negras de um soldado retiram cabeças humanas. O espetáculo é de arrepiar. Mas a multidão, inquieta, sôfrega, num delírio paredes-meias com a inconsciência, procura apenas alimento à curiosidade. O indivíduo se anula. Um desejo único, um único pensamento, impulsa o bando autômato. Não há lugar para a reflexão. Naquele meio deve de haver almas sensíveis, espíritos profundamente religiosos, que a ânsia de contemplar a cena macabra leva, entretanto, a esquecer que essas cabeças de gente repousam, deformadas e fétidas, nos degraus da calçada de uma igreja. Cinco e meia da tarde. Baixa um crepúsculo temporão sobre Santana do Ipanema, e a lua crescente, acompanhada da primeira estrela, surge, como espectador das torrinhas, para testemunhar o episódio: a ruidosa agitação de massas que se comprimem, se espremem, quase se trituram, ofegando, suando, praguejando, para obter localidade cômica, próximo do palco. Desenrola-se o drama. O trágico de confunde com o grotesco. Quase nos espanta que não haja palmas. Em todo caso, a satisfação da assistência traduz-se por alguns risos mal abafados e comentários algo picantes, em face do grotesco. O trágico, porém não arranca lágrimas. Os lenços são levados ao nariz: nenhum aos olhos. A multidão agita-se, freme, sofre, goza, delira. E as cabeças vão saindo, fétidas, deformadas, das latas de querosene - as urnas funerárias -, onde o álcool e o sal as conservam, e conservam mal. Saem suspensas pelos cabelos, que, de enormes, nem sempre permitem, ao primeiro relance, distinguir bem os sexos. Lampião, Maria Bonita, Enedina, Luiz Pedro, Quinta-Feira, Cajarana, Diferente, Caixa-de-Fósforo, Elétrico, Mergulhão...
Observem à esquerda, a cabeça de Lampião ainda em cima do caminhão. Fonte: Livro " Iconografia do cangaço " Ricardo Albuquerque. Adendo Kydelmir Dantas O escritor Alcino Alves Costa no seu livro: "Lampião Além da Versão - Mentiras e Mistério de Angico" cita os mortos na chacina de Angico, sendo: Lampião, Quinta-feira, Maria Bonita, Luiz Pedro, Mergulhão, Alecrim, Enedina, Moeda, Elétrico, Colchete e Macela. Segundo vários escritores afirmam que a lista dos mortos na madrugada de 28 de Julho de 1938, na Grota de Angico, no Estado de Sergipe, a mais correta é a do escritor Alcino Alves Costa.
A multidão se acotovela pra ver de perto o espetáculo bizarro Fonte: Livro "Iconografia do cangaço" Ricardo Albuquerque. - As cabeças! - Quero ver as cabeças! Há uma desnorteante espontaneidade nessas manifestações. - As cabeças. Não falam de outra coisa. Nada mais interessa. As cabeças. - Quem é Lampião? Virgulino ocupa um degrau, ao lado de Maria Bonita. Sempre juntos, os dois. - Aquela é que é Maria Bonita? Não vejo beleza... O soldado exibe as cabeças, todas, apresenta-as ao público insaciável, por vezes uma em cada mão. Incrível expressão de indiferença nessa fisionomia parada. Os heróis de tantas sinistras façanhas agora desempenham, sem protesto, o papel de S. João Batista... Sujeitos mais afastados reclamam: - Suspende mais! Não estou vendo, não! - Tire esse chapéu, meu senhor! - grita irritada uma mulher. O homem atende. - Agora, sim. A pálpebra direita de Lampião é levantada, e o olho cego aparece, como elemento de prova. Velhos conhecidos do cangaceiro fitam-lhe na cabeça olhos arregalados, num esforço de comprovação de quem quer ver para crer. - É ele mesmo. Só acredito porque estou vendo. Houve-se de vez em quando: - Mataram Lampião... Parece mentira! Virgulino Ferreira, o rei do cangaço, o "interventor do sertão", o chefe supremo dos fora-da-lei, o cabra invencível, de corpo fechado, conhecedor de orações fortes, vitorioso em tantos reencontros, -Virgulino Ferreira, o Capitão Lampião, não pode morrer. E irrompe de várias bocas: - Parece Mentira! No entanto é Lampião que se acha ali, ao lado de Maria Bonita, junto de companheiros seus, unidos todos, numa solidariedade que ultrapassou as fronteiras da vida. É Lampião, microcéfalo, barba rala, e semblante quase doce, que parece haver se transformado para uma reconciliação póstuma com as populações que vivo flagelara. Fragmentos de ramos, caídos pelas estradas, durante a viagem, a caminhão, entre Piranhas e Santana do Ipanema, enfeitam melancolicamente os cabelos de alguns desses atores mudos. Modestas coroas mortuárias oferecidas pela natureza àqueles cuja existência decorreu quase toda em contato com os vegetais - escondendo-se nas moitas, varando caatingas, repousando à sombra dos juazeiros, matando a sede nos frutos rubros dos mandacarus. Fotógrafos - profissionais e amadores - batem chapas, apressados, do povo, e dos pedaços humanos expostos na feira horrenda. Feira que , por sinal, começou ao terminar a outra, onde havia a carne-de-sol, o requeijão de três mil-réis o quilo, com o leite revendo, a boa manteiga de quatro mil reis, as pinhas doces, abrindo-se de maduras, a dois mil-réis o cento, e as alpercatas sertanejas, de vários tipos e vários preços. Ao olho frio das codaques interessa menos a multidão viva do que os restos mortais em exposição. E, entre estes, os do casal Lampião e Maria Bonita são os mais insistentemente forçados. Sobretudo o primeiro. O espetáculo é inédito: cumpre eternizá-lo, em flagrantes expressivos. Um dos repórteres posa espetacularmente para o retratista, segurando pelas melenas desgrenhadas os restos de Lampião. Original. Um furo para "A Noite Ilustrada".
Cabeças dos cangaceiros expostas em Santana do Ipanema/AL Fonte: Livro " Lampião e as Cabeças Cortadas, pg. 204, Antonio Amaury e Luiz Ruben. Lembro-me então do comentário que ouço desde as primeiras horas deste sábado festivo: - "Agora todo o mundo quer ver Lampião, quer tirar retrato dele, quer pegar na cabeça...Agora..." Há, com efeito, indivíduos que desejam tocar, que quase cheiram a cabeça, como ansiosos de confirmação, por outros sentidos, da realidade oferecida pela vista. Desce a noite, imperceptível. A afluência é cada vez maior. Pessoas do interior do município e de vários municípios próximos, de Alagoas e Pernambuco, esperavam desde sexta-feira esses momentos de vibração. Os dois hotéis da cidade, literalmente entupidos Cheias as residências particulares - do juiz de direito, do prefeito, do promotor, de amigos dessas autoridades. Para muitos, o meio da rua. Entre a massa rumorosa e densa não consigo descobrir uma só fisionomia que se contraia de horror, boca donde saía uma expressão, ainda que vaga, de espanto. Nada. Mocinhas franzinas, romanescas, acostumadas talvez a ensopar lenços com as desgraças dos romances cor-de-rosas, assistem à cena com uma calma de cirurgião calejado no ofício. Crianças erguidas nos braços maternos espicham o pescoço buscando romper a onda de cabeças vivas e deliciar os olhos castos na contemplação das cabeças mortas. E as mães apontam: - É ali, meu filho. Está vendo? Alguns trocam impressões; - Eu pensava que ficasse nervoso. Mas é tolice. Não tem que ver uma porção de máscaras. - É isso mesmo. Os últimos foguetes estrugem nos ares. Há discursos. Falam militares, inclusive o chefe da tropa vitoriosa em Angico. Evoca-se a dura vida das caatingas, em rápidas e rudes pinceladas. O deserto. As noites ermas, escuras, que os soldados às vezes iluminam e povoam com as histórias de amor por eles sonhadas - apenas sonhadas... Os passos cautelosos, mal seguros sobre os garranchos, para evitar denunciadores estalidos, quando há perigo iminente. Marchas batidas sob o sol de estio, em meio da caatinga enfezada e resseca, e da outra vegetação, mais escassa, que não raro brota da pedra e forma ilhotas verdes no pardo reinante: o mandacaru, a coroa-de-frade, a macambira, a palma, o rabo-de-bugio, facheiro, com o seu estranho feitio de candelabro. A contínua expectativa de ataque tirando o sono, aguçando os sentidos. O sino toca a ave-maria. Dilui-se-lhe a voz no sussurro espesso da multidão curiosa, nos acentos fortes do orador, que, terminando, refere a vitória contra Lampião, irrecusavelmente comprovada pelas cabeças ali expostas. Os braços da cruz da igrejinha recortam-se, negros, na claridade tíbia do luar; e na aragem que difunde as últimas vibrações morrediças do sino vem um cheiro mais ativo da decomposição dos restos humanos. Todos vivem agora, como desde o começo do dia, para o prazer do espetáculo. As cabeças! A noite fecha-se. Em horas assim, seriam menos ferozes os pensamentos de Lampião. O seu olhar se voltaria enternecido para Maria Bonita. Que será feito dos corpos dissociados dessas cabeças? O rosto de Maria Bonita, esbranquiçado a trechos por lhe haver caído a epiderme, está sinistro. Onde andará o corpo da amada de Lampião? A cara arrepiadora, que mal entrevejo à luz pobre do crescente, não me responde nada. E Lampião? Sereno, grave, trágico. O olho cego, velado pela pálpebra, fita-me. (1938). (*) Autor do mais importante dicionário da língua portuguesa publicado no Brasil neste século. Texto do livro esgotado "O chapéu de meu pai, editora Brasília, 1974. Fonte: Diário Oficial Estado de Pernambuco Ano IX - Julho de 1995 Material cedido pelo escritor, poeta e pesquisador do cangaço: Kydelmir Dantas Pescado no http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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