domingo, 17 de janeiro de 2010


















MARACATU DE BAQUE SOLTO - BRINQUEDO DE CABRA-MACHO

“MARACATU, SÓ BOTA NA RUA quem tem coragem”, diz José Modesto da Silva, conhecido por Neném Modesto, presidente do Maracatu Estrela Dourada, do município de Buenos Aires, Pernambuco. Ele se lembra perfeitamente da época em que os grupos de maracatu eram rivais e caboclos de lança eram “bichos brabos” que não hesitavam em puxar a faca um para o outro. Mas não é dessa coragem que ele está falando: “Tem que ter coragem de gastar dinheiro, principalmente porque aqui somos todos pobres. Homem rico de maracatu é um assalariado como eu, que sou pedreiro. Quem trabalha na cana tem serviço por dois, três meses, e aí se acaba. Fica parado”. Como Neném Modesto, outros trabalhadores pobres da Zona da Mata mantêm viva a tradição do maracatu rural em Pernambuco -(também conhecido por maracatu de baque solto, distinto do maracatu de baque virado – veja o próximo texto). Gastam até os últimos recursos, chegando ao fim do carnaval com uma dívida para pagar pelo resto do ano. Esse sacrifício é a maior prova de que, se maracatu é brincadeira, é brincadeira das mais sérias.A tradição vem provavelmente da segunda metade do século 19 e é uma fusão de vários folguedos que existiam nos engenhos de cana-de-açúcar da região: cambindas, cavalo-marinho, caboclinho, pastoril... Do cavalo-marinho vêm os personagens Mateus e Catirina, que abrem o desfile divertindo o público e fazendo “captação de recursos” para o grupo. Limitam-se a pedir dinheiro, mas já houve um tempo em que era aceitável usar outras estratégias: “É por isso que a Catirina também é conhecida como Catita”, diz Manoel Salustiano Soares Filho, vice-presidente da Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Catita, no Nordeste, é o nome que se dá a uns ratinhos miúdos, tão miúdos que podem entrar despercebidos numa cozinha em busca de alimentos. “O Mateus distraía todo mundo na frente de uma casa, enquanto a Catita aproveitava para ir até a cozinha, pelos fundos, roubar um pouco de comida.” Na verdade, o “roubo” era parte da brincadeira: os próprios donos da casa deixavam a comida pronta no fogão. Em seguida vêm os caboclos de lança, as figuras mais emblemáticas do maracatu rural. Para o grande público, os caboclos de lança impressionam pela indumentária: calças e camisas de chitão, a imensa gola (quase um poncho) toda bordada de lantejoulas, a cabeleira de celofane e o surrão – uma estrutura de madeira presa às costas do caboclo, coberta de couro de carneiro ou de material sintético, onde são pendurados vários chocalhos. Ao todo, quase 25 quilos de roupas e acessórios. O rosto tingido de urucum ou outra tinta e os óculos escuros completam a figura. Mas para quem conhece o universo do maracatu rural, a imponência dos caboclos de lança tem outra razão: eles fazem parte dos mistérios da jurema, um sistema de crenças que mistura candomblé e elementos místicos indígenas. É um segredo que nem para os pesquisadores mais pacientes será revelado. No máximo receberão pistas, ouvirão histórias, e somente depois de desligado o gravador. Há quem fale de feitiçarias praticadas contra maracatus rivais. Há quem tenha visto um caboclo desaparecer na sua frente, para reaparecer dias depois, cego, tendo por última visão a chegada de um cavalo branco. Há quem jure ter descido ao inferno e voltado para contar a história. Há quem não acredite em nada disso, e há quem garanta que o caboclo incrédulo está mentindo, para preservar ainda mais o segredo. O que se sabe é que alguns caboclos passam por um ritual de preparação antes do desfile, que inclui um período de abstinência sexual e distância de qualquer bebida que não seja o azougue. Mistura de cachaça, limão e pólvora, o azougue dá forças para o caboclo desfilar os três dias de carnaval sustentando o peso de suas roupas. Após a passagem dos caboclos de lança, vêm os demais personagens: rei, rainha, baianas, porta-estandarte, pés-de-bandeira, damas-de-buquê, dama-de-paço, caboclos de pena. E o mestre, que canta as toadas e comanda a orquestra, composta por instrumentos de percussão e de sopro. PARA TUDO ISSO, é preciso dinheiro. Dinheiro para pagar os integrantes, os trajes, os instrumentos, o transporte e a alimentação dos folgazões. Como “homem rico de maracatu é pedreiro”, e as apresentações não rendem o dinheiro necessário, o jeito é pedir ajuda às prefeituras. Mesmo assim, a conta nunca fecha.“Teve ano que o cachê era de mil reais para cada maracatu”, diz Severino Pedro de Lima, conhecido como Biá, presidente do Maracatu Leão Vencedor, de Carpina. “Um maracatu tem em média 200 componentes; mil reais não dão nem pra alimentar todo mundo pelos três dias de carnaval.” O valor do investimento é, de fato, muito maior do que isso. Somente as cabeleiras dos caboclos de lança custam, em média, R$ 200 cada uma. E existem grupos que chegam a ter 90 caboclos em suas fileiras. E, no entanto, o maracatu resiste. “Pela cultura eu ando a pé dez, quinze léguas”, diz Edmilson Cirandeiro, presidente do Maracatu Águia Formosa, de Tracunhaém-PE. Antônio Pedro da Silva é outro cuja paixão pelo folguedo ultrapassa até a paixão pelo futebol. Torcedor do Santa Cruz, sua casa ostenta acima da porta um brasão do Sport Club do Recife. Explica-se: o time adversário tem como símbolo o animal que dá nome ao seu maracatu, o Leão de Ouro, de Ouro Preto-bairro de Olinda-PE. Como o futebol, o maracatu também é movido por uma indisfarçada competição. Nas sambadas – encontros de dois maracatus – um embate de improviso entre os mestres equivale à final de um campeonato. A disputa de toadas tem que varar a noite sem que nenhum dos dois puxe a marcha – modalidade de toada mais fácil de improvisar – antes do tempo. “Todo mestre que vai pra uma sambada está mal-intencionado, quer engasgar o outro”, diz o mestre Zé Galdino, do Maracatu Estrela Dourada. Modesto, ele desconversa quando o lembram de quando fez chorar o mestre adversário: “Devia ser suor”. Para um folguedo que já causou mortes em um passado recente, até que fazer chorar pode ser encarado como brincadeira. Brincadeira séria, naturalmente.

Rosemary Borges Xavier-2010-D.C-Cajueiro-Recife-PE

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