A ÚLTIMA FOGUEIRA
por Luce Pereira
Num tempo nem tão longo assim, Ariano Suassuna sobreviveu a dois infartos e um aneurisma. A cada internação, milhares de leitores passaram a manifestar, pelas redes sociais, esperança surpreendente na recuperação e o escritor acabou rindo dos riscos enfrentados. Brincalhão, disse, em entrevista veiculada no fim de 2013, que tinha pulado “três fogueiras”. Mas a última delas vem produzindo mobilização extraordinária, compatível com a extrema gravidade do caso. Em seis posts colocados no perfil do Diario de Pernambuco desde a noite de segunda-feira até a de ontem, os números se comportaram assim: curtidas, 45.478; compartilhamentos, 27.272; comentários, 3.844 e um total de 2.974.576 visualizações.
São sofridas as expectativas a cada boletim divulgado pelas equipes médicas, mas não para ouvir delas a melhor das notícias, de que o escritor de 87 anos conseguiu, mais uma vez, driblar as intenções da morte de abreviar o tempo dele entre nós. Não. Diante de tantos anúncios falsos veiculados, deste a tarde de ontem, sobre a morte, aguardava-se o pior a qualquer momento. Nem assim a esperança abandonou os internautas, muito provavelmente para honrar a palavra mais presente na obra e na vida do autor de O auto da compadecida – esperança.
Numa tese de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade de São Paulo, estava a conclusão de que, de acordo com o objeto do estudo, tudo termina em perdão e esperança. Na obra como na vida de Ariano sempre foi assim, embora exista a letra do célebre frevo Madeira que cupim não roi para dizer o contrário. Ali está a mágoa, mas mágoa de carnaval prescreve.
Seja pela riqueza, diversidade e importância da obra, seja pelo carisma do autor, os pernambucanos estão abalados com mais esta “fogueira”, a maior de todas, aquela que coloca o escritor diante do mistério que povoou grande parte do seu legado artístico. A hipótese de ver encerrado para sempre o ciclo das aulas-espetáculo, onde o menino de Taperoá coloca por terra – com humor e simplicidade – até teorias como a de Charles Darwin, enche de tristeza os admiradores. Numa desses encontros, ninguém se sente diante de um intelectual, mas de um mestre feito de carne e osso, que se comporta não como o imortal que é, mas como um homem que cumpre serena e simplesmente o ciclo da vida.
Também entende-se a comoção criada com a notícia sobre a gravidade do aneurisma pelo viés da representatividade – Ariano é o último grande símbolo de uma geração de notáveis escritores. Assim será lembrado, não pela atuação como gestor de cultura, uma área marcada por injunções políticas e que não ocupa nunca o topo das prioridades de governo. Mas não é esta, afinal, a causa a que dedicou a vida e sim ao ofício de escrever: literatura, teatro, poesia, artigos … São suas reflexões como árduo defensor da cultura popular que devem ficar na memória de leitores e admiradores.
Lamentavelmente, não há tempo para finalizar o último grande desafio a que se propôs há 34 anos: reescrever toda a obra, como se ela já não trouxesse em si um valor inestimável, que está dito mesmo antes da cadeira que passou a ocupar na Academia Brasileira de Letras. A propósito, até a própria foi obrigada a desmentir, ontem, a notícia sobre o falecimento.
Como numa obra de literatura, não será possível fazer a morte estar na pele da “compadecida” ou ser, feito o título da peça, uma mulher vestida de sol. Mas, diante da agonia do autor, ao público resta o consolo da grande herança e a certeza de que ele é e sempre será lembrado. Querido pela terra que o viu nascer e pela que o adotou.
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