MANOEL XUDU
Do amigo Ésio Rafael!
Manoel Xudu Sobrinho
Ave Maria!
por Ésio Rafael
O homem que bem pensar
Não tira a vida de um grilo
A mata fica calada
O bosque fica intranqüilo
A lua fica chorosa
Por não poder mais ouvi-lo
(Manoel Xudu)
Na cantoria de viola existem certos detalhes que personalizam determinados cantadores. Isso vem a ocorrer evidentemente, em outras categorias de artistas. Claro que os cantadores estão sempre preparados para enfrentar várias modalidades típicas da profissão, acrescentando aí, as regras impostas pelos Festivais de Violas que acontecem em alguns Estados da Federação. Mas, alguns se caracterizam tanto pela voz, como pelo toque da viola, ou por gostarem mais de desenvolver temas, como: martelo, sextilhas, sete linhas, mourões, etc.
foto: acervo do blog
No pé da parede
Os chamados, “ouvintes de cantoria”, que também são poetas, apesar de não fabricarem os versos, exercem, e como exercem, uma cumplicidade com os cantadores. Eles sabem das histórias dos poetas, declamam seus versos de pé-de-parede, passam pra frente além de ter um passado histórico de imortalizar os vates mais consagrados. Ainda tem um detalhe fundamental relacionado à categoria dos “ouvintes”: eles inspiram os cantadores no momento em que criam os motes já com uma dosagem forte de um poema. Quando Manoel Filó dá o mote: - Uma gota de pranto molha o riso/ Quando o preso recebe a liberdade. Ou então: - O espinho é o vigia/Da inocência da flor. Eis aí, uma possibilidade real do cantador se inspirar, para produzir “pérolas”.
Manoel Xudu Sobrinho foi um homem simples, generoso, eternamente, cavalheiro, incapaz de um ato ríspido, mesmo nas horas em que sua tranqüilidade corresse o risco de ser ameaçada. Nem por isso deixou de ser um poeta atormentado, de permeio, entre “o mundo e o nada”, o pranto e o riso. Natural da cidade de Pilar, na Paraíba, conterrâneo de José Lins do Rego e de João Lourenço, violeiro em plena atividade profissional.
“A obra de Xudu exige um conhecimento maior desse gênio do repente. Cada estrofe é um monumento de Arte, a expressar uma cascata de emoções que despenca em uma alma profundamente humanística”.
Xudu preenche as exigências da categoria, no que concerne, o cantador, o poeta, e o repentista. O cantador canta em qualquer estilo, atende ao mercado, espreita os acontecimentos diários. O poeta não se explica, graças a Deus! Tudo tende à emoção. É o Arquiteto dos sonhos e da metáfora. O repentista é simplesmente maravilhoso! É a marca registrada do repente. É quem pega o fato no ar, muitas vezes sem saber nem o que vai dizer. Ele pega de bote.
Xudu era tudo isso, dentro de uma simplicidade tamanha, ele abordava os temas mais profundos, com a maior presteza:
A MULHER QUE EU CASEI
ALÉM DE LINDA É BREJEIRA
DAQUELAS QUE VAI À MISSA
NO DOMINGO E TERÇA-FEIRA
DAS QUE FAZ UMA SOMBRINHA
COM UM PÉ DE CARRAPATEIRA.
A arte do improviso alimentava corpo e alma deste poeta, do “Pilar”. Bom tocador de viola, o que é um tanto raro dentre os repentistas. Ele e Severino Ferreira quando se deparavam, o “cancão piava”, no desafio só de viola. Gostava de uma “branquinha”. Meu Deus! Às vezes os próprios colegas o prendiam num quarto, até de motel, contanto que ele estivesse bom para o desafio noturno dos “Festivais”.
Xudu colocava a mulher em uma sextilha, onde ela era cúmplice dele, e ainda era quem dava a “chave”. Mas, isso não bonito?
EU ESTAVA NA PRECISÃO
QUANDO ME CASEI COM NITA
NADA TINHA PRA LHE DAR
DEI-LHE UM VESTIDO CHITA
ELA OLHOU SORRINDO E DISSE
OH! QUE FAZENDA BONITA!
Mas, por falar em mulher, nada melhor do que chamar Xudu. Claro, todos somos Freudianos:
MAMÃE QUE ME DAVA PAPA
ME DAVA PÃO E CONSOLO
DAVA CAFÉ DAVA BOLO
LEITE FERVIDO E GARAPA
MAS UMA VEZ DEU-ME UM TAPA
E DEPOIS SE ARREPENDEU
BEIJOU AONDE BATEU
DESMANCHOU A INCHAÇÃO
“QUEM NÃO TEM MÃE TEM RAZÃO
DE CHORAR O QUE PERDEU”.
E então? Veremos agora, o Xudu autobiográfico. Revelando uma trajetória de vida no sacrifício, na porrada. Particularmente, nunca tinha visto uma autobiografia, tão sincera, com todas as etapas da vida do poeta. Genial:
DIA 13 DE MARÇO TERÇA-FEIRA
ANO MIL NOVECENTOS TRINTA E DOIS
POUCO TEMPO DEPOIS QUE O SOL SE PÔS
MAMÃE DAVA GEMIDOS NA ESTEIRA
NUMA CASA DE BARRO E DE MADEIRA
MUITO HUMILDE COBERTA DE CAPIM
EU NASCI PRA VIVER SOFRENDO ASSIM
MINHA DOR VEM DOS TEMPOS DE MENINO
VIVO TRISTE POR CAUSA DO DESTINO
E A SAUDADE CORRENDO ATRÁS DE MIM.
Daqui vai um alerta para aqueles que conhecem outras versões de alguns versos que por acaso constem nesta matéria. É que, os próprios ouvintes de cantoria, os cantadores, os livros (e são muitos), têm versões diferentes, no que concerne às mudanças constantes nas linhas ou estrofes, ou até relacionados à autoria de um verso. Eu mesmo, já presenciei contradições de versos dentro da casa do próprio Lourival Batista, cuja autoria era atribuída a ele. Isso é literatura oral. Portanto, o mais importante, é que ao alterarem estrofes dos versos, nunca se fere o princípio básico do que o autor quis passar para os ouvintes. Na sextilha do poeta, João Paraibano: - Eu estava no sertão/ Balançando em minha rede/ Vendo o açude vazio/ Com dois rachões na parede/ E as abelhas no velório/ Da flor que morreu de sede. Pois bem, este açude, coitado! Nessas alturas, já vai com mais 100 rachões na parede...
Manoel Xudu tinha o olho biônico. Seus versos eram recheados de carinho, paixão, desde quando necessários. O mote que ele recebeu, foi o seguinte: Pode ir lá que está gravado/ O nome de Ana Maria:
O NOME DA MINHA AMADA
ESCREVI COM EMOÇÃO
NA PALMA DA MINHA MÃO
NO CABO DA MINHA ENXADA
NO BATENTE DA CALÇADA
E NO FUNDO DA BACIA
NA CASCA DA MELANCIA
MAIS GROSSA DO MEU ROÇADO
“PODE IR LÁ QUE ESTÁ GRAVADO
O NOME DE ANA MARIA.
E agora? Agora vamos terminar esse papo, com Manoel Xudu Kafkiano. Pôxa! E Xudu sabia o que era Surrealismo? Então, para os leitores mais engajados:
A PRISÃO ONDE ESTAVAM OS CONDENADOS
NA ANTIGA CIDADE DE BEZETA
ERA TODA PINTADA À TINTA PRETA
E TRANCADA POR FORTES CADEADOS
GUARNECIDA POR TRINTA E DOIS SOLDADOS
CADA UM COM DOIS METROS DE ALTURA
E ALÉM DE SE LER A AMARGURA
NO SEMBLANTE DAS MUDAS SENTINELAS
QUEM OLHASSE PRAS GRADES DAS JANELAS
TAVA VENDO O RETRATO DAS TORTURAS.
ÉSIO RAFAEL é poeta, professor e pesquisador da cultura popular esio.rafael@uol.com.br
Manoel Xudu Sobrinho
Ave Maria!
por Ésio Rafael
O homem que bem pensar
Não tira a vida de um grilo
A mata fica calada
O bosque fica intranqüilo
A lua fica chorosa
Por não poder mais ouvi-lo
(Manoel Xudu)
Na cantoria de viola existem certos detalhes que personalizam determinados cantadores. Isso vem a ocorrer evidentemente, em outras categorias de artistas. Claro que os cantadores estão sempre preparados para enfrentar várias modalidades típicas da profissão, acrescentando aí, as regras impostas pelos Festivais de Violas que acontecem em alguns Estados da Federação. Mas, alguns se caracterizam tanto pela voz, como pelo toque da viola, ou por gostarem mais de desenvolver temas, como: martelo, sextilhas, sete linhas, mourões, etc.
foto: acervo do blog
No pé da parede
Os chamados, “ouvintes de cantoria”, que também são poetas, apesar de não fabricarem os versos, exercem, e como exercem, uma cumplicidade com os cantadores. Eles sabem das histórias dos poetas, declamam seus versos de pé-de-parede, passam pra frente além de ter um passado histórico de imortalizar os vates mais consagrados. Ainda tem um detalhe fundamental relacionado à categoria dos “ouvintes”: eles inspiram os cantadores no momento em que criam os motes já com uma dosagem forte de um poema. Quando Manoel Filó dá o mote: - Uma gota de pranto molha o riso/ Quando o preso recebe a liberdade. Ou então: - O espinho é o vigia/Da inocência da flor. Eis aí, uma possibilidade real do cantador se inspirar, para produzir “pérolas”.
Manoel Xudu Sobrinho foi um homem simples, generoso, eternamente, cavalheiro, incapaz de um ato ríspido, mesmo nas horas em que sua tranqüilidade corresse o risco de ser ameaçada. Nem por isso deixou de ser um poeta atormentado, de permeio, entre “o mundo e o nada”, o pranto e o riso. Natural da cidade de Pilar, na Paraíba, conterrâneo de José Lins do Rego e de João Lourenço, violeiro em plena atividade profissional.
“A obra de Xudu exige um conhecimento maior desse gênio do repente. Cada estrofe é um monumento de Arte, a expressar uma cascata de emoções que despenca em uma alma profundamente humanística”.
Xudu preenche as exigências da categoria, no que concerne, o cantador, o poeta, e o repentista. O cantador canta em qualquer estilo, atende ao mercado, espreita os acontecimentos diários. O poeta não se explica, graças a Deus! Tudo tende à emoção. É o Arquiteto dos sonhos e da metáfora. O repentista é simplesmente maravilhoso! É a marca registrada do repente. É quem pega o fato no ar, muitas vezes sem saber nem o que vai dizer. Ele pega de bote.
Xudu era tudo isso, dentro de uma simplicidade tamanha, ele abordava os temas mais profundos, com a maior presteza:
A MULHER QUE EU CASEI
ALÉM DE LINDA É BREJEIRA
DAQUELAS QUE VAI À MISSA
NO DOMINGO E TERÇA-FEIRA
DAS QUE FAZ UMA SOMBRINHA
COM UM PÉ DE CARRAPATEIRA.
A arte do improviso alimentava corpo e alma deste poeta, do “Pilar”. Bom tocador de viola, o que é um tanto raro dentre os repentistas. Ele e Severino Ferreira quando se deparavam, o “cancão piava”, no desafio só de viola. Gostava de uma “branquinha”. Meu Deus! Às vezes os próprios colegas o prendiam num quarto, até de motel, contanto que ele estivesse bom para o desafio noturno dos “Festivais”.
Xudu colocava a mulher em uma sextilha, onde ela era cúmplice dele, e ainda era quem dava a “chave”. Mas, isso não bonito?
EU ESTAVA NA PRECISÃO
QUANDO ME CASEI COM NITA
NADA TINHA PRA LHE DAR
DEI-LHE UM VESTIDO CHITA
ELA OLHOU SORRINDO E DISSE
OH! QUE FAZENDA BONITA!
Mas, por falar em mulher, nada melhor do que chamar Xudu. Claro, todos somos Freudianos:
MAMÃE QUE ME DAVA PAPA
ME DAVA PÃO E CONSOLO
DAVA CAFÉ DAVA BOLO
LEITE FERVIDO E GARAPA
MAS UMA VEZ DEU-ME UM TAPA
E DEPOIS SE ARREPENDEU
BEIJOU AONDE BATEU
DESMANCHOU A INCHAÇÃO
“QUEM NÃO TEM MÃE TEM RAZÃO
DE CHORAR O QUE PERDEU”.
E então? Veremos agora, o Xudu autobiográfico. Revelando uma trajetória de vida no sacrifício, na porrada. Particularmente, nunca tinha visto uma autobiografia, tão sincera, com todas as etapas da vida do poeta. Genial:
DIA 13 DE MARÇO TERÇA-FEIRA
ANO MIL NOVECENTOS TRINTA E DOIS
POUCO TEMPO DEPOIS QUE O SOL SE PÔS
MAMÃE DAVA GEMIDOS NA ESTEIRA
NUMA CASA DE BARRO E DE MADEIRA
MUITO HUMILDE COBERTA DE CAPIM
EU NASCI PRA VIVER SOFRENDO ASSIM
MINHA DOR VEM DOS TEMPOS DE MENINO
VIVO TRISTE POR CAUSA DO DESTINO
E A SAUDADE CORRENDO ATRÁS DE MIM.
Daqui vai um alerta para aqueles que conhecem outras versões de alguns versos que por acaso constem nesta matéria. É que, os próprios ouvintes de cantoria, os cantadores, os livros (e são muitos), têm versões diferentes, no que concerne às mudanças constantes nas linhas ou estrofes, ou até relacionados à autoria de um verso. Eu mesmo, já presenciei contradições de versos dentro da casa do próprio Lourival Batista, cuja autoria era atribuída a ele. Isso é literatura oral. Portanto, o mais importante, é que ao alterarem estrofes dos versos, nunca se fere o princípio básico do que o autor quis passar para os ouvintes. Na sextilha do poeta, João Paraibano: - Eu estava no sertão/ Balançando em minha rede/ Vendo o açude vazio/ Com dois rachões na parede/ E as abelhas no velório/ Da flor que morreu de sede. Pois bem, este açude, coitado! Nessas alturas, já vai com mais 100 rachões na parede...
Manoel Xudu tinha o olho biônico. Seus versos eram recheados de carinho, paixão, desde quando necessários. O mote que ele recebeu, foi o seguinte: Pode ir lá que está gravado/ O nome de Ana Maria:
O NOME DA MINHA AMADA
ESCREVI COM EMOÇÃO
NA PALMA DA MINHA MÃO
NO CABO DA MINHA ENXADA
NO BATENTE DA CALÇADA
E NO FUNDO DA BACIA
NA CASCA DA MELANCIA
MAIS GROSSA DO MEU ROÇADO
“PODE IR LÁ QUE ESTÁ GRAVADO
O NOME DE ANA MARIA.
E agora? Agora vamos terminar esse papo, com Manoel Xudu Kafkiano. Pôxa! E Xudu sabia o que era Surrealismo? Então, para os leitores mais engajados:
A PRISÃO ONDE ESTAVAM OS CONDENADOS
NA ANTIGA CIDADE DE BEZETA
ERA TODA PINTADA À TINTA PRETA
E TRANCADA POR FORTES CADEADOS
GUARNECIDA POR TRINTA E DOIS SOLDADOS
CADA UM COM DOIS METROS DE ALTURA
E ALÉM DE SE LER A AMARGURA
NO SEMBLANTE DAS MUDAS SENTINELAS
QUEM OLHASSE PRAS GRADES DAS JANELAS
TAVA VENDO O RETRATO DAS TORTURAS.
ÉSIO RAFAEL é poeta, professor e pesquisador da cultura popular esio.rafael@uol.com.br
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