Outras Palavras participa da revolução cultural e artística em Água Preta
Projeto da Fundarpe passou pela comunidade de Usina Santa Terezinha, que vive desde 2015 uma transformação social com a chegada da Usina de Arte
Por Marcus Iglesias
Uma região na Mata Sul pernambucana tem experimentado uma verdadeira revolução na sua convivência com a cultura e a arte. A área da Usina Santa Terezinha, desativada há décadas e localizada no município de Água Preta, a 130 km do Recife, vive um momento de reconexão com suas raízes e de novas possibilidades graças a implantação da Usina de Arte, um ambiente que agora mói arte contemporânea conjugada com sustentabilidade botânica, tudo centrado na população do entorno da vila – estimada em cinco mil pessoas. Este foi o ponto de parada na última sexta-feira (6) do projetoOutras Palavras, que pela primeira vez atendeu a estudantes do ensino fundamental – e até alunos do estado vizinho Alagoas.
Esta edição da iniciativa promovida pela Secretaria de Cultura de Pernambuco e Fundarpe contou com a participação do escritor Sidney Rocha, da Fada Magrinha e da cirandeira e Patrimônio Vivo de Pernambuco, Lia de Itamaracá. O encontro aconteceu na escola João Vicente de Queiroz e teve a presença de 300 pessoas, entre moradores da comunidade e estudantes de seis escolas da região e municípios vizinhos.
A Usina de Arte deixou de moer cana-de-açúcar para se ressignificar, dando espaço à cultura, arte, sustentabilidade e empreendedorismo. Tudo começou quando o empresário e filho da terra Ricardo Pessoa de Queiroz Filho, bisneto do fundador da Usina Santa Terezinha – mais conhecido na região simplesmente como Ricardinho – teve a ideia de criar ao lado da esposa Bruna Simões, da publicitária Bárbara Maranhão e do artista José Rufino a Associação Socioambiental e Cultural do Jacuípe, na intenção de promover ações artísticas, educativas e ambientais que resgatassem valores perdidos na comunidade, além de promover atuações em residência, oficinas artísticas, escola fixa de música e o Festival Arte na Usina, que acontecerá pelo terceiro ano consecutivo no próximo mês de novembro.
Para Jeutevânia Moraes, diretora do Grupo Municipal Terezinha Pessoa de Queiroz – uma das escolas presentes na realização desta edição do Outras Palavras – este momento ficará na história da comunidade. “Tenho certeza que vai deixar uma marca importante na nossa juventude e em todos que participam do ambiente escolar. Ricardinho, em 2015, junto a sua esposa Bruna Simões, iniciaram aqui um trabalho revolucionário. Aqui a gente agora tem oficina do que você imaginar, de arte, pintura, dança, yoga, e várias outras coisas. Com esta ação da Fundarpe, teremos um contato intenso com outros artistas, da literatura, música e patrimônios do nosso estado”, comemora. Além de sua instituição, participaram da ação o Colégio Municipal Terezinha Pessoa de Queiroz, a Escola Municipal Maria do Carmo Alves Ventura, o Centro de Ensino Fundamental Ministro Renan Calheiros, a Escola João Vicente de Queiroz e a Escola Campestre, de Alagoas.
Antes de dar início à sequência de atividades que compunham a programação, Antonieta Trindade, gestora do Outras Palavras e vice-presidente da Fundarpe, ressaltou o papel importante que este projeto tem tido na reformulação do que se entende sobre ambiente escolar. “O que nós trazemos com esta iniciativa é uma oportunidade de ampliar a visão de mundo de vocês que participam da escola, no sentido de transformar este local. Fazer com que ele possa nos dar o máximo de conhecimento possível, pois informação é uma arma muito poderosa na nossa formação como cidadãos”, explica. O projeto já passou por 381 escolas, atingindo mais de seis mil alunos de todas as regiões do estado, e distribuiu mais de quatro mil livros por onde passou.
Sob mediação do jornalista e cineasta Marcos Lopes, cerca de 100 alunos conversaram com o escritor e romancista Sidney Rocha, natural de Juazeiro do Norte (CE), vencedor do Prêmio Jabuti (com o livro O destino das metáforas), e autor de diversas outras obras. Logo de início, Sidney começou sua fala se relacionando diretamente com a região. “Eu estou ganhando aqui hoje um prêmio. Um premiação para um escritor não é um livro que ele publica, não é o que ele vende, mas é exatamente a oportunidade de poder trocar ideia com as pessoas. A literatura ela nasce justamente com esta intenção. Eu fui estudante de escola pública assim como vocês. Eu sou como vocês de uma região agrícola. Sou da roça. As pessoas costumam dizer que Sidney saiu do mato, mas o mato não saiu dele. E eu me sinto em casa aqui”, revelou.
O escritor buscou levar um novo olhar sobre a literatura, não apenas como uma linguagem artística, mas como um meio de transformação social. “Tenho uma história pra falar sobre Águas Pretas, Barreiros e Palmares. Quero considerar que são cidades irmãs, que partilham dos mesmos problemas e desafios. Há uns cinco ou seis anos, quando houve aquelas grandes enchentes por aqui, eu fiquei muito sensibilizado com tudo e resolvi ajudar de alguma forma. Eu sou editor de livros e quis dentro do que sei fazer doar um valor para ajudar as pessoas que estavam passando por aquela necessidade. Então tive uma ideia. Juntei escritores do Brasil e pedi a eles uma contribuição. E eu não pedi dinheiro, pedi um conto, uma obra de ficção, para ajudar a vida de alguém de verdade. Consegui os contos, e ao longo do processo de produção eliminei todos os outros custos, como papelaria e impressão e até no processo de venda, através de parcerias. Em resumo: consegui juntar em uma semana de vendas R$45 mil, e o livro se tornou a primeira contribuição social que a região recebeu”.
Sidney Rocha aproveitou para falar um pouco sobre suas obras, como o livro de contosMatriuska, lançado em 2009. “Quem aqui sabe o que é uma Matriuska? É aquela boneca russa, que fica uma dentro da outra. Este é um livro feminino. É um livro de contos feito há sete anos e que fala no que hoje tem sido discutido com muita justiça, que é o empoderamento feminino. A necessidade de recuperar o papel da mulher na sociedade. E essa relação com a boneca russa é porque em todos os contos, no fim das contas, se tratam de uma mulher só. O particular dentro do universal. Já Sofia (1985) é possivelmente o livro que me trouxe aqui hoje. Ele ganhou o Prêmio Osman Lins, que é equivalente ao que é hoje o Prêmio Pernambuco de Literatura, cujas obras vencedoras vocês vão receber. Esta publicação foi lançada há 35 anos e é um livro que eu reformo a cada dez, feito reforma que a gente faz em casa. Algumas coisas novas, como o Facebook e Whatsapp, por exemplo, entraram na obra para deixá-la mais atualizada com o mundo contemporâneo”.
A estudante Ana Paula, da escola João Vicente Queiroz, parabenizou o autor pela obra Matriuska e disse que, para ela, “empoderamento feminino é como devemos enfrentar o sistema”, e que iria postar esse comentário numa rede social. “Eu fico muito feliz com sua fala. Quando você diz esse recado sua voz se propaga por essa sala, mas a partir do momento que ele for pra internet também se propagará muito mais. É importante que o escritor esteja atento a essas questões de alcance e divulgação também”, comentou Sidney Rocha. Depois da pergunta, Ana Paula ganhou de presente uma edição do livroDois Nós na Gravata, premiado na edição segunda edição do Prêmio Pernambuco de Literatura.
Por fim, o autor falou sobre como realmente se sente reconhecido. “Tenho que dizer a vocês que não me senti quando ganhei o Prêmio Jabuti, por exemplo. Não é um premio literário que faz um escritor ter reconhecimento. O que o faz é quando ele volta pra terra dele, volta na casa dele, e o reconhecem. É quando a gente volta às origem, e não quando atravessamos a fronteira. Quando aquelas pessoas que tem o mesmo rosto, comeram da mesma fava, nos reencontram. É dizer que tudo o que foi conquistado mundo afora não foi por mim, foi por vocês”, disse, sob aplausos da plateia.
Logo depois que Sidney encerrou a apresentação, a cirandeira e Patrimônio Vivo de Pernambuco, Lia de Itamaracá, ocupou o salão da escola para levar uma experiência de resgate da cultura popular. “Sou uma merendeira escolar aposentada. Meu nome de batismo e Maria Madalena Correia do Nascimento, mas atualmente atendo como Lia da Ciranda. Na minha família ninguém canta, ninguém dança, sabem nem pra onde vai. Só quem nasceu com esse dom de cantar fui eu. Hoje tenho um espaço cultural na Ilha de Itamaracá, e teve uma época que ele foi ao chão, mas agora estamos trabalhando pra levantar ele novamente”, disse com o sorriso de sempre, para em seguida entoar suas canções mais conhecidas, como Essa Ciranda é Minha, Mamãe Oxum, Ciranda de Lia e Quem me deu foi Lia.
Este Outras Palavras teve ainda a presença da Fada Magrinha, que deu uma oficina de iniciação musical para estudantes do 1º ao 5º ano das escolas presentes. “O objetivo foi fazer uma abordagem musical com as crianças, primeiro falando de coisas simples da música, como pulsação, forte e fraco, trabalhando esses conceitos no corpo e na voz, pra depois partir pros instrumentos. A ideia é mostrar que a música é acessível, está dentro da gente, que não precisamos ter um super instrumento em casa. Aqui noOutras Palavras a gente trouxe essa reflexão de que a música começa na gente. Depois tivemos a vivência na ciranda, aproveitando que Lia de Itamaracá estava presente, e colocamos todas as crianças pra participarem da dança. O recado que deixamos é que música está em todo canto e ela começa dentro da gente”.
Sobre as atividades culturais na agenda da Usina de Arte, o curador José Rufino deu detalhes sobre o que vem por ai de novidade. “Os eventos não param, sempre há um artista presente, e dialogando bem com a comunidade. E sem as parcerias como essa que acontece agora, nada disso seria possível. A partir da quinta-feira (13) teremos um novo artista, José Luiz Passos, que já esteve no nosso festival do ano passará e passará um mês aqui conosco na residência, que estará finalizando um romance que se passa na região da Mata Sul. E será lançado pela Companhia Editora de Pernambuco”.
O empresário Ricardo Queiroz também conversou com o Portal Cultura.PE e revelou como o sonho da Usina de Arte teve início. “Na realidade a gente passou muito tempo sem frequentar a usina, mas em 2012 voltamos. No ano seguinte fizemos uma viagem a Inhotim, e eu e minha mulher ficamos encantados com o projeto, principalmente com os móveis que ficam no jardim, do artista Hugo França. Eu decidi traze-lo pra cá, e aqui ele sugeriu que a gente convidasse outros artistas e envolvesse a comunidade. Ficamos loucos com a ideia e começamos em julho de 2015, quando recebemos o primeiro artista residente, o José Rufino, que ficou completamente alucinado com tudo e ficou por aqui. Hoje ele é diretor da nossa associação e curador da Usina de Arte”.
Ricardo Queiroz destacou também a importância da realização do Outras Palavras na região, no sentido de fortalecer o resgate da cultura e do potencial criativo que a comunidade da Usina Santa Terezinha tem a oferecer. “Esse tipo de parceria é muito gratificante, porque as pessoas percebem que existe um governo. A gente fala mal de todas as coisas que dão errado, mas tem coisa que acontece e dá certo. Quando eu cheguei o Sidney estava falando, e você via que tinha muita gente discutindo, refletindo junto ao escritor. É muito enriquecedor. Eu pessoalmente senti uma emoção muito forte ao ver Lia de Itamaracá. A Fada Magrinha é fantástica também, porque as crianças pequenas são as que mais absorvem. A gente espera conseguir mudar a realidade de uma comunidade. Isso aqui é uma mini cidade e a gente pode influir. Se vocês estivessem aqui em 2012, o astral era baixo. Eu cresci aqui e via meus amigos de infância saindo pra ir morar em outras cidades. Hoje você anda na rua, vê as pessoas, e o astral é outro. A gente tem feito um trabalho de resgate das nossas raízes, e a ciranda, por exemplo, estava completamente esquecida. Você vai trazendo isso e vai despertando nas pessoas esse sentimento de pertencimento. Devolvendo uma parte desse espaço das nossas raízes que não deveria ter se perdido”.
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