terça-feira, 8 de novembro de 2016

A arte de transformar espinhos em poesia

Pinturas, poemas e músicas de Gildemar Sena preservam cultura sertaneja

Gildemar faz planos para incrementar a cultura de Uauá logo que se recupere do acidente que sofreu

Certas plantas da caatinga transformaram folhas em espinhos para sobreviver à seca. Gildemar Sena também é cactus. Só que ele se mantém vivo de outra forma: desvira os ferrões sob forma de poesia.

Sou aroeira, baraúna e quebra facão/Rei de mangá de boi/ Punhal de Lampião/Sou a coragem do vaqueiro/ De perneira e de gibão/ De alpercata de rabicho/ De guiada na mão/ Sou o canto da rolinha/ Chuva caindo no chão

Gildemar nasceu em Juazeiro, passou a adolescência em Guaratuba (PR), voltou para a cidade natal e ficou de vez em Uauá, sofrendo outras mutações.
Primeiro, descobriu o rock de Led Zeppelin e Deep Purple. No Sul do país, no início dos anos 70, teve acesso à TV.
“No interior da Bahia, naquela época, só havia o “chuvismo” -, lembra
Passou a apreciar a música regional nordestina quando retornou a Juazeiro, sete anos depois. Foi influenciado por artistas como Zecrinha (José Batista da Silva Sobrinho), de Senhor do Bonfim, e forjado nas músicas de Luiz Gonzaga, do Trio Nordestino e de Jackson do Pandeiro. Virou compositor, mas não aprendeu a cantar. Se materializou cantor na voz de Cláudio Barris.
Menino viu que tinha habilidade para desenhar com guache e nanquim. Começou a riscar. Algumas exposições depois, em 1995, fez um único curso para aprender algo de maneira formal — a técnica de pintura a óleo — com Hector Valdez, em Salvador.
Descobriu-se também escultor, cenógrafo, aderecista, cordelista, fotógrafo, produtor cultural e documentarista. As esculturas lhe valeram uma bursite. As outras atividades, alegrias e, às vezes, ferroadas.
Depois de ser aderecista do filme “A Guerra de Canudos”, lançado entre 1995/1996, construiu no centro de Uauá um cenário de 800 metros quadrados, reproduzindo uma igreja, as latadas e os casebres de Belo Monte. Visava atrair turistas para a cidade, mas foi mal interpretado.
Como as construções eram de taipa, diziam que serviam de reduto para barbeiros. Em vez de borrifar inseticida, a prefeitura derrubou tudo e construiu uma praça com quiosques, onde impera o som de pagodes e música sertaneja que nada tem a ver com o estilo pé de serra para desespero de Gildemar.
Outro espinho lhe foi cravado após tentar preservar a única casa da cidade onde conselheiristas se abrigaram durante o primeiro confronto com o Exército. Os herdeiros do proprietário não aceitaram a proposta que ele fez como coordenador de cultura do município. O imóvel histórico foi vendido para outro interessado e demolido. Ficou o vazio de um terreno baldio até hoje. Agruras da falta de vontade de preservação.

CHEGADA EM UAUÁ

Ao regressar do Sul para o Nordeste, Gidemar resolveu ter emprego fixo e prestou concurso para a Fundação Nacional de Saúde, órgão federal responsável por ações de saneamento para prevenção e controle de doenças. Conquistou a vaga de auxiliar administrativo e a designação para o hospital de Uauá, a 127 km de Juazeiro.
Na nova cidade, recebeu duas convocações. Uma para integrar a seleção do município, cuja maior alegria era vencer a equipe rival de Monte Santo, e outra para assumir a coordenadoria (posteriormente, secretaria) de Cultura. Aceitou ambas.
A idade lhe tirou do time, mas não impediu que ele se mantivesse agora como secretário municipal na luta por preservar o São João de Uauá como um dos melhores da Bahia e evitar o desaparecimento de manifestações populares como o Terno Cigano e as bandas de pífanos. Faz o que pode com as poucas verbas da pasta.
O município tem um único Terno Cigano, no distrito de Lagoa do Pires. Ele é formado por mulheres que se vestem de ciganas, com coroas douradas na cabeça. Nos últimos meses, as duas principais mestras Azíndia, 90 anos, e Emerinda, que tocava zabumba, morreram. O grupo desfila e canta durante as festas juninas.

BAIXO RELEVO

Quem passa por Uauá pode não ser apresentado a Gildemar, mas certamente conhecerá algumas de suas obras nos muros da cidade.
Usando a técnica de baixo relevo em cimento, o artista plástico retratou cenas do cotidiano rural, do cangaço e de Canudos na fábrica da Coopercuc (Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá); em sua própria residência; e no Colégio Estadual Antônio Conselheiro.

Cenas do cotidiano da caatinga foram reproduzidas nos muros da casa de Gildemar em baixo relevo

São necessários entre 30 a 45 dias para finalizar cada painel. Eles precisam ser restaurados a cada dois anos, devido ao envelhecimento da tinta e infiltrações. Obras semelhantes foram feitas na igreja nova de Canudos e em um restaurante de Camaçari, na região metropolitana de Salvador.
Para a Coopercuc, o pintor produziu ainda uma série de 11 desenhos à bico de pena, intitulado “As Catadeiras de Umbu”, na qual mostra a rotina das cooperativadas que tiram os frutos das árvores, cuidadosamente, arranhando os braços para evitar que eles caiam no chão e percam a certificação das geleias e doces que são produzidas. O material foi levado para a Europa, em 2010, e um dos quadros ficou com Carlo Petrini, criador do movimento Slow Food, na Itália.

O trabalho das catadeiras de umbu e o processo de fabricação de doces estão retratados na fábrica da Coopercuc

Por  Paulo Oliveira

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